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Pensamentos sobre criação e consumo de conteúdo

Quando comecei a trabalhar (informalmente e não-remuneradamente) com criação de conteúdo na Internet, confesso que eu esperava algo “fácil”. É só escrever umas coisas e postar. Ou só fazer um texto num fundo simples e postar. Parece o mesmo pré-julgamento sobre ser escritore. É só escrever; “escrever é fácil”. Parte do que eu considerei como conteúdo criado incluía textos no feicebuque e postagens no pássaro azul; coisas agora perdidas devido a eu ter excluído minhas contas nessas plataformas (uma ou outra coisa pode ter se salvado como cópia ou por meio de prints, mas isso não importa).

Eu gosto de criar conteúdo. Me faz bem. E não pretendo parar. Ainda. Mesmo assim, a experiência de criar conteúdo me fez perceber dois grandes aspectos envolvidos: o trabalho dispensado e o público envolvido. Tudo isso me fez pensar muitas coisas. Por mais incrível que pareça, muitas dessas muitas coisas são atravessadas por lógicas capitalistas e os efeitos das tecnologias atuais sobre nós.

Esse texto pretende falar de vários tópicos que se cruzam ou que são paralelos, sem tanta atenção a uma ordem de ideias ou conectar tudo. Espero que ainda faça algum sentido no final e traga reflexões.

  • Um trabalho não reconhecido como tal

Sei que isso vai parecer bobagem pra muita gente, mas criar conteúdo é trabalho. Sim, trabalho. Isso mesmo, trabalho. E, sendo trabalho, acho que deve haver alguma consideração com o tempo investido. E esse tempo investido envolve tudo do conteúdo: sua estética, a informação, a abordagem, e os recursos usados para sua divulgação.

Não é algo de minutos ou apenas meia hora. Bem, a menos que não haja atenção com a qualidade. Ou, na melhor das hipóteses, que seja algo extremamente simples e objetivo com sua proposta. Quando se pensa na construção de uma postagem, podemos gastar muito tempo escrevendo o texto, formatando-o, escolhendo uma fonte e tamanho de letras, e então escolhemos um fundo e podemos adicionar imagens ou símbolos que possam coexistir com a ideia do texto, tudo para se criar uma harmonia, podemos aplicar teoria das cores, quem se preocupa com a acessibilidade deve se atentar a tudo e à descrição de texto (quando possível), e então podemos pensar em como agradar ou contornar os famigerados algoritmos. Assim, é horrível a sensação de trabalho desvalorizado quando uma postagem boa é sabotada pelo algoritmo.

O que eu gostaria que muita gente conseguisse entender é que tempo de vida está sendo gasto em conteúdo. Não é qualquer pessoa tendo a disposição e oportunidade e podendo ter a iniciativa de construir e difundir conhecimentos nos meios virtuais. Não é qualquer pessoa que aceita a vocação de educar, falar, se expor, trazer assuntos extensos. E não é todo mundo que se compromete com verdade, fatos, qualidade e didática.

Aqui, embora tudo se aplique a qualquer conteúdo, dou uma ênfase maior em conteúdos sobre temas de grupos minorizados, em especial gênero e sexualidade. Além de serem temas já marginalizados e, como tais, propensos a atraírem atenção negativa, repressão e perseguição, quem faz esses conteúdos têm a carga emocional a mais de se preparar sempre para ataques (pequenos ou em massa) e se policiar com reações e usos de termos porque a segurança nas redes é quase nula (recentemente, um pássaro azul aí tornou-a oficialmente nula) e as medidas contra discursos de ódio são tendenciosas (postagens usando viado como ofensa não caem, enquanto postagens usando como identidade caem).

  • Os algoritmos e influencers

Atualmente, vivemos reféns dos algoritmos, que são instáveis por mudarem demais e serem exigentes em suas demandas. É evidente que os algoritmos não foram feitos para todo mundo.

As plataformas populares fazem um péssimo serviço quando o assunto é proteção a grupos minorizados contra discursos de ódio (isso quando há alguma declaração em suas diretrizes). Muita coisa referente a pautas sociais, em especial dissidências de sexualidade e de gênero, acaba sendo alvo de censuras. Quando não censuradas (explicitamente), são ofuscadas pelo algoritmo, que diminui o alcance de postagens. E isso se estende aes usuáries, que podem receber um tipo discreto de banimento (shadowban), onde são escondides de linhas do tempo e até de buscas. Embora tenha estratégias para se evitar essas coisas, por vezes, banimentos surgem do nada e sem motivo aparente.

Ser criadore nessas plataformas é pedir para ser desvalorizade. A menos que o conteúdo seja superficial e siga as demandas e exigências, que mantenha um público fiel, e que consiga monetização. Mas, quase sempre, os conteúdos que conseguem isso são entretenimento. Quando não são, quando é algo mais voltado à política, é sempre alinhado com a direita.

Se eu fosse realmente tentar viver dos meus conteúdos nas plataformas, eu precisaria de todo um investimento (sim, dinheiro), e editar/remodelar tanto o que faço para ser o mais palatável possível que eu logo nem me reconheceria, e seria muito mais influencer que ativista. Isso não é um ataque a ser influencer (mas foda-se quem se sentir atacade).

Sobre ser influencer, acho interessante explorar isso. Recentemente, fiz uma enquete no meu perfil do instagrã para saber se meu público de lá me considerava ou não ume influencer. A maioria dos votos foi… que sim. Não soube como me sentir. Eu acredito que influencer é uma posição nas redes sociais que pode ser usada positivamente. Meu problema com isso é o que as pessoas devem fazer para serem influencers “grandes”. E eu diria que os efeitos da visibilidade afetam muito a vida da pessoa. Ao mesmo tempo em que palavras simples a tornam uma fada sensata, um erro ou declarações problemáticas desenterradas de anos atrás podem ser uma queda sem expectativa de uma reerguida.

Óbvio que há influencers de nicho. E influencers com ao menos 10 mil seguidóries podem até conseguir patrocínios de marcas e ganhar uns milhares de lulas por mês. Talvez, ser influencer de nicho seja algo confortável para aquelus que tratam de assuntos mais marginalizados. E ser ume pequene influencer com patrocínio pode ser o ideal para quem trabalha com algum assunto mais leve e está feliz fazendo o que gosta. A questão real é quem consegue cair nas graças dos algoritmos, quem consegue aquela fama virtual, quem consegue atenção.

Quantas pessoas de grupos minorizados que abordam pautas sociais estão tendo visibilidade? E, entre essas pessoas, quantas delas são mais “distantes” dos padrões sociais e trazem ideias antissistema mais evidentes e frequentes? Fica aqui um ótimo caso para análise.

  • Um público que não sabe/consegue consumir

Lidar com um público é algo desafiador também. Geralmente, as interações com um público podem ser dinâmicas e variadas. Algumes produtóries podem fazer conteúdos que o público quer, enquanto outres fazem mais o conteúdo que querem fazer. Porém, ainda acho difícil lidar com as pessoas em geral. Pode ter gente que não se importa com isso. Mas, entre o público “negativo”, acho que posso separar três grupos: pessoas que não engajam com o conteúdo, pessoas que só engajam negativamente, e pessoas que evidentemente não assimilam o conteúdo.

O que quero dizer com não engajar são as pessoas que não ajudam a espalhar o conteúdo ou torná-lo melhor. É mais do que não curtir; às vezes, curtir é a única coisa que fazem. Falo de pessoas que estão me seguindo, acompanham minhas coisas, e, quando lanço conteúdo, a pessoa não faz o mínimo para aumentar seu alcance, algo que o simples ato de compartilhar (repostar, retuitar, enfim) já ajudaria. Costumo receber elogios pelo que faço, mas há sempre muita pouca vontade de realmente espalhar o que faço. Fico mesmo extremamente chateade vendo gente que exalta minha pessoa, gente que até então considero como amizade, nunca ou quase nunca compartilhando qualquer coisa que faço. Penso o seguinte: se o conteúdo é bom, faço questão de espalhar, porque quero que mais gente acesse o que aprecio.

E eu entendo essa ação vindo de pessoas mais “discretas” em suas redes, mas não é o caso da maioria que tenho em mente; e, pior ainda, é quando preferem compartilhar conteúdos os quais já critiquei ou não possuem a mesma qualidade dos meus. Uma pessoa conhecida já me disse que as pessoas costumam “esquecer” mesmo, se esquecem de compartilhar, comentar, enfim. Contudo, o sentimento de não reconhecimento continua.

Sobre engajamento negativo. Tenho a impressão que há pessoas que acompanham meu conteúdo e o de outras pessoas com o único propósito de sempre encontrar algo para criticar. Quem é criadore pode entender o sentimento: aquela pessoa que nunca ou quase nunca engaja positivamente com o conteúdo de qualquer forma (curtindo, comentando, compartilhando, salvando), e que nunca ou quase nunca interagiu numa conversa. Ela só aparece pra criticar. Só. A única atenção dada é para críticas. Ah, e isso não é criticar críticas. O ponto é só existir as críticas. Mesmo quando são pertinentes. O pior é quando nem são pertinentes.

E isso ainda pode vir com outras interações absurdas. Uma vez, vi um ativista palestino sendo alvo disso. Ele fez um conteúdo que estava dividido em partes. Era um assunto envolvendo a comunidade e a situação da Palestina. E então, vem uma pessoa, comenta criticando a “falta de informação”, o ativista responde educadamente que ainda vai abordar o resto, e a pessoa exige com toda arrogância a continuação da postagem. Bem assim, como se ativista não fosse gente e não tivesse vida, como se fosse uma máquina pra atender a pessoa na hora que ela quer. Aquele imediatismo típico de quem não produz conteúdo. Sem contar a falta de noção das pessoas em compreender que não é possível abordar assuntos extensos num vídeo de três minutos ou um carrossel de dez imagens.

O tópico mais polêmico é sobre assimilar conteúdo. Como eu sei o que as pessoas assimilam ou não? Então, isso é possível de saber se baseando em declarações das pessoas e com quais outros conteúdos elas engajam. Há muito tempo, num perfil antigo do instagrã, fiz uma sequência de postagens didáticas sobre conceitos básicos. Expliquei coisas como o que diferencia identidade e expressão de gênero. E há inúmeros outros conteúdos de outras pessoas explicando isso também, é um assunto meio saturado de tanto que foi falado e repetido. Muito tempo depois, fiz uma enquete sobre se as pessoas ainda tinham dúvidas sobre esses conceitos. E me surpreendi com gente que acompanha meus conteúdos e de outres ativistas respondendo que sim. Entre elas, uma pessoa não-binária (e até indaguei como a pessoa sabe que é n-b se não sabe nem o básico).

Recentemente, tive outra surpresa desagradável. Mesmo após anos falando de neolinguagem e linguagem neutra, sendo que linguagem neutra já é um tópico desenvolvido há quase uma década, tem gente que me segue que não entendeu o uso de linguagem neutra como genérica, achando que ela é apenas para pessoas não-binárias. Isso, lembrando, que meu uso da linguagem neutra assim é frequente em tudo que faço e posto. Fico realmente assustade sobre como temas que, na minha opinião, já saturaram, ainda não estão elucidados para muita gente. E, mesmo com tanto conteúdo já produzido até aqui, dúvidas muito básicas permanecem mesmo entre aquelus que acompanham os conteúdos. De onde isso está vindo? O que está causando isso?

  • Informação: temos muita, entendemos pouca

Devo admitir que eu estava culpabilizando demais as pessoas, achando que elas são só desinteressadas mesmo. Parte delas, com certeza é. Partes delas não quer mesmo aprender, ainda mais quando não um conteúdo não diz o que querem ou confirma seus vieses. Porém, tive acesso a pesquisas indicando que a cognição das pessoas está sendo prejudicada pelas redes sociais, pela estrutura delas. Vivemos diariamente com uma sobrecarga de informações diferentes. Podemos dizer que isso já acontecia por meio de jornais e a televisão. Porém, o fenômeno ganhou uma proporção muito maior e em pouquíssimo tempo com as redes sociais, as quais estamos acessando sempre pelos celulares. Estamos vivenciando uma era única da história da espécie homo sapiens, onde estamos o tempo todo conectades, acessando o mundo virtual e mergulhando num oceano infinito de informações (e desinformações).

Perceber isso me fez desanimar de produzir. Afinal, se de um lado tem algoritmos me sabotando, e do outro, um público tendo sua atenção e cognição afetadas pela tecnologia, e nada disso está sob controle das massas, me pergunto: vale continuar produzindo conteúdo?

Bem, estive tentando seguir essa lógica: melhor alguém estar produzindo algo do que ninguém estar. A Internet é um oceano; por isso, em algum momento, uma maré pode levar aquilo que produzi para alguém que precisava. Não importa quanto demore. O que importa é existir. E, tentando sair do pessimismo, acredito que podemos ter uma devida reação, começar a voltar com um senso crítico, reavaliar como usamos as redes, e tentarmos alternativas para essa nossa “saúde virtual” (as redes descentralizadas são uma alternativa).

Sei que estamos diante de problemas maiores que nossas vontades, porém, não acho que isso seja desculpa para não se fazer reflexão sobre nosso consumo. Acho importante sabermos nos perguntar se estamos sabemos consumir conteúdo. Não todo conteúdo. O senso crítico também importa para selecionarmos o que vale ou não ser consumido. E, além disso, pensarmos no trabalho que pessoas investiram em tal conteúdo. Valorização. Acho que essa é a palavra.

Falei muito hoje, né? Bem, espero que uma maré leve esse texto para alguém que precisava.

Links adicionais:

National Geographic Brasil – Como o uso das redes sociais pode afetar o cérebro

UOL | Drauzio Varella – Excesso de estímulos sobrecarrega o cérebro e prejudica a memória

Jornalismo IESB – Imediatismo das redes sociais afeta mais os jovens e causa sobrecarga cognitiva

Um texto complicado tentando descomplicar experiências não-binárias

Aviso de conteúdo: cissexismo e exorsexismo, diadismo, capacitismo, policiamento de experiências, links externos.

Minhas recomendações iniciais antes desse texto é ao menos lerem sobre o que é qualidade de gênero e tentarem não racionalizar demais tudo que será explicado aqui. Esse é um texto que pode ser mais fácil para aquelus com facilidade em pensamento abstrato. Esse é um texto para quem quiser entender gênero e não-binaridade para muito além de ideias básicas, resumidas e reducionistas.

Termos referentes a gênero podem acabar sendo compreendidos de forma equivocada por aquelus com um entendimento limitado do assunto. Nem acho que as pessoas em geral tenham a maior culpa disso, pois a ignorância não é causada por elas, sendo resultado de uma sociedade cisnormativa que não ensina sobre gênero (ou ensina dentro de violências e imposições). Além disso, ativistas e grupos que poderiam estar educando sobre gênero também não fazem um bom trabalho quando só se preocupam em falar do assunto de forma sempre simplificada, sem ousar em subverter os pensamentos hegemônicos, e/ou tornando tudo palatável e visando o assimilacionismo em vez da emancipação.

Apesar dos desafios de todos os lados, muitas comunidades cisdissidentes pelo mundo estiveram desenvolvendo conceitos e subvertendo/ampliando ideias para explicar sobre a diversidade de gênero, sejam experiências descritas como “binárias”, que pertencem de forma integral, total e exclusiva aos gêneros homem e mulher; ou experiências fora da binaridade, que engloba tanto a não-binaridade quanto a cisdissidência, assim como identidades restritas de culturas não-ocidentais (que podem não ser contempladas pelos conceitos antes mencionados). A popularização das redes sociais e seus recursos permitiram uma facilidade e propagação muito maiores e exponenciais disso. A plataforma Tumblr, principalmente blogues da anglosfera, é o maior exemplo disso.

O texto focará em não-binaridade, mas é possível aplicar o que será explicado aqui para qualquer possibilidade de gênero em qualquer contexto cultural. Esse é o resultado de todo conhecimento que acumulei sobre experiências não-binárias, tendo como base principal os conhecimentos de comunidades virtuais. Ao longo do texto haverá termos mencionados com links para suas definições, e pode ser útil parar por um momento a leitura para checar essas definições.

Sobre terminologias em geral da não-binaridade

Para começar a entender não-binaridade, acho que todo mundo deveria ter mente que colocar expectativas e tomar os gêneros binários como referências não vai fazer a não-binaridade ser entendida. A não-binaridade é muito ampla e subjetiva. E está propondo o rompimento de sensos comuns e construções em torno do gênero.

Termos referentes à não-binaridade podem descrever as seguintes coisas: um único gênero, a presença de mais de um gênero, quantidades definidas de gênero, uma quantidade indefinida de gênero, ausência de gênero, parcialidade de gênero, fluidez de gênero, mudança de intensidade de gênero, experiências contraditórias de gênero, experiências de gênero influenciadas  por determinados fatores, experiências de gênero descritas com conceitos comuns, experiências de gênero descritas por fora de conceitos comuns, e outras possibilidades.

Isso é para elucidar que nem tudo pode ser resumido a “gêneros não-binários”. Aporagênero descreve um gênero não-binário, mas apenas um gênero, enquanto poligênero não é um gênero, é uma identidade que descreve a presença de vários gêneros, podendo ser todos não-binários ou mesmo podendo incluir os gêneros homem e mulher.

Assim como outros termos de outros tipos, nenhuma identidade de gênero é um monólito ou um destino. Pessoas podem se entender de outra forma e mudar como descreve sua identidade. Uma experiência pode ser descrita por mais de um termo também. Termos costumam ter uma definição geral, mas ninguém precisa seguir obrigatoriamente tudo colocado na definição (salvo exceções que envolvem exclusividades). Entre definições, há aquelas mais gerais e vagas, há aquelas mais específicas e fechadas. E sobre definições, é importante consultar várias fontes, pois o conhecimento tende a ser descentralizado e termos podem ser alterados por pessoas, por bem ou por mal.

Termos maiores e menores, usos diversos dos termos

Muitos termos são ou podem ser intercambiáveis, assim como termos mais restritos sempre podem ter vínculo com termos mais amplos.

Às vezes, uma identidade de gênero pode ser descrita por mais de um termo. Às vezes, certos termos parecem ser “iguais” ou muito parecidos, e isso não é um problema; as sutis diferenças podem ser relevantes para as pessoas.

O termo mais amplo e vago possível é o próprio termo não-binárie. Pode ser tanto um termo guarda-chuva para todas as pessoas que se encaixam no conceito quanto uma identidade de gênero por si só. Não necessariamente um único gênero. Uma pessoa gênero neutro pode se dizer apenas não-binária tanto quanto uma pessoa pangênero.

Pegando agora como exemplos as identidades agênero e apogênero. Podem ser intercambiáveis por descreverem ausência de gênero. São similares, não são iguais. Enquanto a causa da ausência de gênero fica mais vaga na definição de agênero, a definição de apogênero pontua sobre essa ausência ser causada por alguém estar fora do conceito de gênero, que pode reforçar que tal ausência se deve por alguém não compreender ou rejeitar gênero totalmente, e esses aspectos podem não fazer parte da vivência de tode agênero.

As identidades homem não-binárie e mulher não-binárie têm definições amplas suficiente para cobrir diversas pessoas não-binárias que são homem ou mulher de alguma forma. Contudo, não se propõem a ser termos guarda-chuva, mesmo que pudessem até ser interpretados assim (algo que eu, particularmente, não acharia um problema). Percebam que é diferente eu orientar que pessoas n-b que são homem ou mulher de alguma forma podem acessar essas identidades e eu dizer que essas pessoas devem se encaixar nesses termos em qualquer circunstância.

Xenogênero serve tanto como guarda-chuva e descritor de um grupo de identidades como também uma identidade de gênero por si só. Uma pessoa gênero-estrela poderia se dizer como de um xenogênero, por exemplo. E devido a um histórico de ser um termo que atrai muito ódio, muitas pessoas xenogênero acabam se dizendo apenas não-binárias, por ainda ser um termo maior e mais “seguro” nesse caso.

Há experiências de gênero que acabam não cabendo numa única definição. Por isso, pessoas podem usar termos que consideram úteis no momento ou suficientes, mesmo não as descrevendo totalmente ou da melhor forma que gostariam. Pode ser o caso de uma pessoa que se diz xumgênero enquanto não entende melhor seu gênero. Pode ser o caso de uma pessoa que se diz tanto gênero queer quanto gênero-dissidente por ao menos reforçarem o desafio às normas.

Não-binarizando os binários e qualidades de gênero

Uma coisa que se mistura muito ainda no imaginário popular é que masculine implica em homem e feminine implica em mulher. Peço que busquem abrir a mente para desassociar expectativas e qualidades postas em cima de determinadas identidades de gênero, que entendam que certos termos associados a gênero podem ter mais que um significado, e que tentem acompanhar perspectivas novas sobre gênero.

Vou começar com as seguintes afirmações:

– o gênero homem não é necessariamente masculino / nem todo gênero masculino é próximo ou relacionado ao gênero homem / masculinidade e hombridade podem ser coisas separadas / um gênero definido por ou conectado com hombridade pode ser distinto de homem.

– o gênero mulher não é necessariamente feminino / nem todo gênero feminino é próximo ou relacionado ao gênero mulher / feminilidade e mulheridade podem ser coisas separadas / um gênero definido por ou conectado com mulheridade pode ser distinto de mulher.

Tendo essas coisas em mente, identidades como proxvir e juxera podem fazer algum sentido, é possível entender porque há pessoas não-binárias masculinas e femininas distantes dos gêneros binários, e gêneros não-binários relacionados com hombridade e mulheridade ganham um espaço no imaginário não-binário.

Algumes podem até indagar, e com toda razão, como que comunidades não-binárias estão cunhando e aceitando gêneros homem e mulher como parte da não-binaridade. Acontece que algumas pessoas podem experienciar tais gêneros de maneiras tão distantes da hegemonia que acabam se alienando e rejeitando a mesma. Ainda há uma diferença quando pessoas se reivindicam homens e mulheres, por mais inconformistas que sejam, e pessoas que reivindicam termos como melle e femil, que seriam menos aceitos do que os gêneros impostos. Com certeza deve haver similaridades nas vivências entre homens afeminades e melles e entre mulheres masculinizades e femils, mas como cada parte quer interagir e se posicionar no binário de gênero ainda marca uma diferença relevante. E a não-binaridade não está aqui para fazer restrições aes dissidentes; se amanhã todes es homens e mulheres inconformistas do mundo combinassem de se declararem não-bináries, a comunidade teria a total obrigação de aceitá-les.

E vale ressaltar que esses termos ainda são novos e não chegaram a muitas pessoas. Entre essus homens e mulheres inconformistas há muites que poderiam se encontrar nas identidades melle e femil, e acabam se dizendo homens e mulheres pela falta de outros termos para se descreverem, podendo até usar termos como viade e sapatone para esse propósito ou preferindo não usá-los por quaisquer motivos. E lembrando que viade e sapatone são termos brasileiros com um histórico longo de subversão de gênero, chegando a ser identidades de gênero para uma parte des heterodissidentes e cisdissidentes.

Por fim, uma última coisa importante que seria ótimo que mais gente entendesse é que termos como homem e mulher, para algumas pessoas, não se refere aos gêneros binários. Pode se referir a uma apresentação social, como a pessoa se sente em relação aos gêneros binários, quais vivências desses grupos elas podem considerar relevantes, e quais aspectos associados a esses gêneros podem agradá-las (desde características físicas até comportamentos). Então é possível alguém ciclogênero se dizer homem por ser transmasculine e gostar de sua expressão, assim como é possível alguém nímise se dizer mulher por ser lide como tal e considerar os direitos de mulheres uma luta relevante pra si.

Encontrando e desencontrando semelhanças e diferenças em experiências

Um erro muito comum em como pessoas tratam os termos e suas definições é ficar querendo prescrever tais termos para as pessoas, exigindo que pessoas com tal experiências sempre devem se encontrar em determinado termo. Quando isso foca em semelhanças e ignora a possibilidade das diferenças serem relevantes, só serve para pessoas se sentirem pressionadas a usar certos termos, e, no fim, acaba servindo também a certos discursos de quais termos são válidos ou não.

Usando de exemplo três pessoas com identidades relacionadas aos gêneros homem e mulher para facilitar. Qual seria a diferença entre uma pessoa bigênero homem/mulher, uma pessoa demihomem e demimulher, e uma pessoa femache? Uma resposta simples e breve: nenhuma ou toda diferença. Depende de cada pessoa. Não é incomum que certos termos possam ser intercambiáveis, assim como pessoas com certa experiência podem usar termos diferentes para a mesma. Se for para tirar alguma diferença significativa desses termos, o que pode ser feito é usar suas definições propostas, o que partiria mais pra uma questão de interpretação de texto.

Explicando cada termo na ordem descrita acima. Uma pessoa bigênero tem dois gêneros, podendo ser simultâneos ou não, inteiros ou não. Uma pessoa demihomem e demimulher é parcialmente homem e parcialmente mulher, e tal parcialidade pode ter qualquer quantidade e intensidade, pode ou não acompanhar outro(s) gênero(s). Uma pessoa femache é homem e mulher simultaneamente, não necessariamente metade um e metade outro. Percebe a abertura oferecida para várias interpretações e como experiências diferentes poderiam existir e se encaixar em termos distintos? Assim como há a mesma abertura para uma experiência se encaixar em dois ou todos os três termos. Uma pessoa que é homem e mulher poderia se encontrar em todos os termos, ou poderia se encontrar apenas em um dependendo de como seja sua experiência específica em ser homem e mulher.

Talvez alguém se diga bigênero homem/mulher porque tal identidade especifica que há dois gêneros. Talvez alguém se diga demihomem e demimulher porque entende que possui um gênero que é metade homem e metade mulher. Talvez alguém se diga femache porque a identidade foca no ser homem e mulher sem falar em quantidades.

E lembrando que não há nenhum problema inerente em pessoas com experiências parecidas adotando termos diferentes, pois nada disso as distancia uma da outra. Todas as pessoas nesses exemplos poderiam se encontrar em espaços e conteúdos feitos para pessoas viabinárias.

Gênero misturado com coisas que não são gênero

Esse deve ser um dos tópicos que atrai mais reacionarismo até mesmo dentro da própria comunidade não-binária. Quando falamos em identidades de gênero influenciadas por expressão e orientação, muites podem acusar a comunidade não-binária de estar “confundindo as coisas” ou, pior ainda, estar prestando o desserviço de banalizar os conceitos e as lutas e tornar a compreensão da diversidade mais difícil. Afinal, nesses últimos tempos e com toda a ascensão desses temas, muites fizeram um enorme esforço em separar os conceitos como se fossem todos entidades totalmente separadas umas das outras. Acontece que, bem, isso não deixa de ser uma forma de higienização e tornar pessoas dissidentes mais palatáveis para partes da sociedade normativa. Assim, um homem cis gay é mais palatável que uma bicha, por exemplo.

Se vamos propor o rompimento das normas, precisamos ir na raiz delas. Tornar “tudo” em gênero pode até parecer banal logo de início, mas entendam que criar termos que se afastam mais e mais das imposições de gênero é uma forma de combatê-las. Por mais que certos termos pareçam “próximos” dessas imposições, como identidades influenciadas por intersexualidade (já que há um sexo influenciando um gênero) ou identidades dependentes da expressão de gênero, nenhum deles seria aceito como partes das normas. E continuam desafiando-as, já que as normas não aceitam mais de dois sexos e nem um gênero influenciado por expressão andrógina. Outras reações revelam certas opressões, como no caso de reações negativas aos neurogêneros ou tentativas de empurrar xenogêneros como “exclusividade neurodivergente”. Muitas retóricas focam em invalidar como neurodivergência pode afetar a identidade de gênero, colocando neurodivergentes como “incapazes” de entender gênero “de verdade” (seja lá o que isso significa) e como basicamente pessoas cis “doentes mentais” (logo, não devem ser consideradas nas discussões de gênero).

Pegando alguns exemplos de experiências melhor explicadas. É possível a assexualidade de uma pessoa influenciar seu gênero no momento em que sua falta de atração a aliena de expectativas sexuais em torno dos gêneros binários. É possível uma pessoa intersexo com um corpo com características consideradas atípicas se alienar dos gêneros binários quando a mesma nunca foi reconhecida como nenhum dos dois. É possível que estereótipos de gênero tenham sido os referenciais de gênero de uma pessoa e rejeitá-los a tenha feito se sentir alienada do que significa ser homem/mulher.

E vale lembrar que os conceitos atuais são construções… atuais. Estão atendendo às demandas de como atualmente estamos compreendendo as diversas características e manifestações das pessoas. Não seria tão absurdo afirmar que, em outros tempos, onde ser homem e mulher era sinônimo de ser heterossexual, heterodissidentes seriam “es não-bináries” daquele contexto, por mais estigmatizante que fosse.

Até no gênero há limites: exclusividades e impossibilidades

Identidade de gênero é uma experiência livre, a princípio. No entanto, há identidades criadas que acabam não podendo ser acessadas por todes, identidades “exclusivas”. E tais exclusividades não são arbitrárias, elas se encontram com questões do mundo atual.

O maior exemplo são identidades específicas de certos grupos com características ou condições que não são “universais”, como nos exemplos de anatomia e cultura. Identidades influenciadas por intersexualidade são exclusivas de intersexos, e intersexo não é uma categoria subjetiva; ou as pessoas são intersexo ou não. Identidades baseadas em aspectos de uma determinada cultura serão exclusivas de pessoas de tal cultura, e cultura não é uma mera escolha; ou as pessoas crescem dentro/têm ascendência de tal cultura ou não.

Assim como explicado antes que outros fatores que não são “relacionados a gêneros” podem ainda influenciar a identidade de gênero, consequentemente, certos fatores levariam a identidades exclusivas. Isso, inclusive, fez com que a identidade pangênero fosse redefinida, pois antes a definição de “alguém com todos os gêneros” criava esse furo de que certas identidades de gênero não são acessíveis. Para quem estuda as questões de gênero de forma interseccional, sabe que não é nada absurdo, por exemplo, questões de raça se misturarem às de gênero.

Independentemente do caso, pessoas se apropriando de certos termos que não são acessíveis a elas continua sendo um ato que replica alguma forma de opressão, não importa o nível ou a intenção envolvida. Pessoas que dizem “ter todos os gêneros possíveis” poderiam ponderar sobre o que realmente entendem por isso. Isso não é de jeito nenhum policiar a experiência alheia, mas trazer um questionamento válido, pois há um fundamento sobre como seria possível ter todos os gêneros e como há gêneros que não fariam mesmo sentido na vivência de certas pessoas.

Por fim, algumas coisas são mesmo impossíveis. Por exemplo, é impossível um indivíduo ser transfeminino e transmasculino ao mesmo tempo, pois nenhuma pessoa é designada homem e mulher ao mesmo tempo.

Posso ter complicado mais gênero nessa tentativa de descomplicar, mas acho que foi exatamente no ato de complicar que pude passar uns direcionamentos para deixar mais descomplicado. Foi uma tentativa. Espero que eu tenha ajudado de alguma forma.

Referências adicionais:

Orientando – Lista de identidades não-binárias

Ajuda NHINCQ+ – Indicadores para saber se você não é cis/ipso

Ajuda NHINCQ+ – Resposta a uma pergunta que demonstra sentimentos complexos sobre gênero

Ajuda NHINCQ+ – Não, xenogêneros não são “bait”

Amplifi.casa | Asterismos – Coisas com gênero × Coisas associadas com gênero

Amplifi.casa | Asterismos – Feminilidade e masculinidade dentro de terminologia não-binária

Amplifi.casa | Asterismos – A relevância de rótulos específicos

Amplifi.casa | Asterismos – Alinhamento de gênero e como essa terminologia se tornou inadequada

Amplifi.casa | Asterismos – A relevância das identidades de gênero pessoais

Amplifi.casa | Asterismos – Perguntas comuns sobre não-binaridade que vão além das básicas

Amplifi.casa | Asterismos – 10 coisas que até pessoas não-binárias acabam errando sobre ser não-binárie (repostagem)

A tal polêmica sobre fetichistas na Parada

Aviso de conteúdo: fetichemisia e ciseterossexismo, moralismo sexual, respeitabilidade, menções a práticas fetichistas, menção a bebida e droga.

Essa é uma daquelas discussões que deveria ter sido superada há décadas (literalmente) e que continua sendo trazida como se fosse grande problema da atualidade. Por mais que se faça parecer uma preocupação legítima, quando devidamente analisada, revela muito mais sobre como moralismo e respeitabilidade ainda estão presentes na mentalidade de tanta gente, e que essa mentalidade ainda está sendo passada para as gerações seguintes.

Por incrível que pareça, várias comunidades e organizações de eventos de orgulho já “resolveram” esse “problema” há muito tempo.

Talvez não seja uma discussão tão presente no contexto lusófono, mas quem acompanha a anglosfera pode ter alguma ideia de que todo ano é a mesma coisa: a discussão sobre se fetichistas são ou não são parte da Parada. E a discussão traz os mesmos tópicos; qual é a relação entre fetichistas e a comunidade LGBTQIAPN+, argumentos de que a Parada deveria ser para “todos os públicos”, pontuações sobre a presença de fetichistas causar incômodos, se uma pessoa apenas usando uma roupa de couro é ou não sexual, enfim.

Como não acompanho tanto conteúdos lusófonos, não sei o quanto foi discutido sobre fetichistas na Parada, se é considerado um tópico controverso, ou mesmo se já foi uma discussão e agora foi superada. A única questão relacionada a isso e presenciada por mim foi o fato de que a APOGLBT, a organização da Parada de São Paulo capital, dispunha de um trio para fetichistas de couro e nenhum para bissexuais. E o problema não são es fetichistas, é a exclusão descarada de um grupo que pertence a uma das quatro letras mais conhecidas da sigla da comunidade.

Enfim, espero poder explorar essa discussão da forma como deveria. Acredito que renda bastante, e que gerações atuais em especial precisam desse recado.

A história da comunidade e des fetichistas

A pergunta certa não é se fetichistas fazem parte da Parada, e sim por que elus fazem parte. Devido a serem historicamente marginalizades por normas sexuais, fetichistas formaram suas próprias comunidades para terem apoio e a liberdade de se expressarem. O fato de estarem fora das normas sexuais es sujeitam a experiências similares com outros grupos também fora dessas normas; com isso, surgiu uma proximidade circunstancial e orgânica com pessoas dissidentes de sexualidade e gênero. Não é por um acaso que heterodissidentes e cisdissidentes se fazem tão presentes em vários espaços fetichistas. E isso incluiu também trabalhadories sexuais, mais um grupo posto num local de marginalidade sexual.

Comunidades queer/dissidentes ao longo do século 20 foram criando subculturas baseadas em estéticas e comportamentos, características que de alguma forma destacavam tal subgrupo e como esse subgrupo se relacionava entre si e se expressava ao mundo. Uma subcultura muito famosa e evidente é a do couro (leather), protagonizada mais por homens gays/aquileanes (não é exclusiva desse grupo), e que se caracteriza por vestimentas de couro – das peças mais comuns, como jaquetas e chapéus, até as mais exóticas, como alças e coleiras.

Em um dos maiores eventos da história da comunidade LGBTQIAPN+, a Revolta de Stonewall em 1969, fetichistas estavam lá, enfrentando a violência policial, lutando contra a discriminação sexual direcionada a todes es “desviantes”, e permaneceram juntes com pessoas da comunidade em marchas e protestos. As estéticas e práticas associadas a fetichismos também desafiavam a moralidade, até a própria heteronormatividade; portanto, não faria sentido a emancipação sexual defendida por movimentos queer não incluir es fetichistas.

Na crise da AIDS nas décadas de 1970 e 1980, novamente, fetichistas estavam lá, dando apoio à comunidade, oferecendo espaços mais seguros, cuidando de pessoas adoecidas, exigindo condições melhores de saúde e comprometimento para tratamentos efetivos e acessíveis para aquelus vivendo com HIV. O medo da infecção, inclusive, acabou direcionando muita gente a procurar “alternativas” de prazer sexual, e puderam encontrá-las em práticas fetichistas como o BDSM.

Com todo esse histórico de participação e coligação, não há o que realmente debater sobre se fetichistas fazem parte das Paradas. A história da comunidade traz em si a resposta.

Cruzamento entre ciseterossexismo e fetichemisia

Debater sobre fetichistas é desconhecimento da história ou é por algum outro motivo? Guardem essa pergunta.

Percebo uma dificuldade de muita gente de compreender como fetichistas podem ser marginalizades, e qual seria a ligação com a comunidade sendo que fetichismo pode ser praticado por pessoas que dos grupos sistematicamente beneficiados (perissexo/cis/hétero). E eis a questão: ser dissidente sexual e de gênero já foi… fetiche.

Em um período muito heteronormativo, apoiado pelos poderes biomédico e jurídico, tudo que estava fora das formas foi tido como uma perversão, degeneração, imoralidade, um ataque a tal da ordem natural, e uma ameaça que precisa ser corrigida. Com isso, já foi considerado fetiche querer relações com pessoas do “mesmo sexo”, ser uma pessoa trans ou fazer qualquer arte drag ou transformismo. A comunidade divide um histórico de fetichemisia com es fetichistas em geral. Parte da luta da comunidade envolveu desmistificar todas as formas de dissidências, mostrar o quanto era estigmatizante e irreal apontá-las como inerentemente sexuais (e num contexto negativo), e construir uma compreensão melhor sobre como vivências sexuais e de gênero são plurais e legítimas.

Atualmente, creio que não há quase retóricas que colocam dissidências como fetiche. Porém, o estigma ainda persiste, podendo até ser cometido por outras pessoas da comunidade que não querem ser associadas a fetichistas. Aqui, podemos notar bem uma separação entre as demandas e lutas da comunidade e des fetichistas enquanto um grupo próprio.

Assim como fetichistas cis héteros podem ter ciseterossexismo para desconstruir, pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ também precisam desconstruir fetichemisia. Ser uma pessoa dissidente sexual e de gênero não necessariamente implica que ela não terá absorvido retóricas opressivas contra formas de prazer “fora do convencional”. Isso não é surpresa vindo de gente mais assimilacionista, que quer se escorar em cima de um puritanismo sexual e achando que isso vai torná-la mais aceitável para o sistema.

Os supostos problemas que ocorrem na Parada

Aposto que deve ter gente se perguntando aí: “Então o que fazemos com essus fetichistas que estão transando ao ar livre ou envolvendo es outres em seus atos sem consentimento?”

Que pergunta interessante, espetacular, sensacional! Vou rebater isso com outra pergunta: Quem disse que tem gente fazendo ou defendendo isso?

Incrível a ideia de fetiche que muita gente tem, de que ser fetichista é transar na rua e fazer coisas esquisitas com todo mundo. Nem entrando na questão de dizer que as pessoas deveriam questionar, antes de tudo, o que elas sabem de fetichismo. Vamos a algo mais prático: quantas vezes atos sexuais em público e envolvendo gente que não consentiu foram presenciados numa Parada?

Não vou ficar vendendo uma ideia puritana da Parada. Esse nem é o objetivo, e isso faria o evento perder seu sentido original. Pode ter uma pessoa do nada tirando a roupa em cima do trio? Sim (já vi). Pode ter em algum lugar uma tela passando cenas de filme pornô? Sim (ouvi falar). Pode ter em algum canto de um lugar mais isolado duas pessoas transando? Sim (ouvi falar). Sobre tudo isso, eu pergunto: e daí? O que vamos fazer? Sei que parece medíocre e que estou “validando” tudo isso, mas a verdade é que essas coisas acontecem! Apenas acontecem! Fato. Em todo lugar, pode ter gente com esses comportamentos. Vamos criticar também quem assedia, bebe até cair, ou se droga e fica agressive, entre outras. E vamos trazer as críticas para todo lugar, não apenas a Parada!

A pergunta que importa mais é: como lidar com situações desconfortáveis como essas? Dependendo do que for, como algo em algum trio ou carro, tem sempre alguém para intervir. Se não tem, recomendo que se afastem, caso estejam a uma distância próxima de pessoas assim, ou procurem apenas ignorar e focar em outras coisas, pois Paradas são enormes e cheias de atrativos. Podem sentir desconforto? Óbvio! Apenas tenham isso em mente: acontece.

E se uma família está lá e crianças presenciam algo assim? Sinceramente, isso é problema da família. Se a família considera melhor, pode optar em não levar mais crianças no evento. É a melhor decisão? Não sei. Contudo, se minha opinião importar aqui, eu recomendaria que famílias tivessem um diálogo franco com as crianças. É bem isso que falei: acontece. Explicar que isso acontece. Explicar que isso existe. Apresentar a realidade objetiva para essas pessoas que estão se desenvolvendo e aprendendo sobre o mundo. Garanto que isso implantará menos estigma nas crianças.

Mesmo assim, vale pontuar: por que situações desconfortáveis como essas, que podem ser praticadas por qualquer pessoa, são jogadas intensamente em cima de fetichistas?

A maior dica que eu poderia dar para quem quer tanto assim discutir sobre o que acontece numa Parada é: vá numa Parada. Tenha a experiência, o contato direto. Caso alguém não tenha como ir por qualquer motivo ou mesmo não queira participar do evento, minha outra maior dica seria colher relatos de quem participa da Parada. E ênfase nessa parte; não é o que as mídias populares falam, não é o que especulações e rumores falam, não é o que postagens aleatórias e anedóticas de gente na Internet falam. Também, não é apenas um ou outro relato negativo, menos ainda quando são circunstâncias as quais não são culpa do evento em si (por exemplo, roubos e furtos acontecem em qualquer evento de aglomerações).

Ainda existe a possibilidade de fetichistas estarem performando atos? Existe. E aqui tem uma área propícia para uma série de reflexões: até que ponto algo pode ser considerado sexual ou não, e até ponto algo é suficientemente sexual para precisar ser escondido? Incrivelmente, há nuances aí, respostas que pessoas diferentes podem dar. Deve ser consenso que uma pessoa mijando na cabeça da outra é uma ação muito sexual e que pode gerar desconforto alheio quando feita em público. Vamos a outros exemplos. Uma pessoa com máscara de cachorro e andando de quatro na rua é sexual ou suficientemente sexual para precisar ser escondido? Uma pessoa com roupas de couro mostrando mamilos e barriga é sexual ou suficientemente sexual para precisar ser escondido? Várias perguntas poderiam ser feitas, nos levando até a questionar: é o contexto da máscara de cachorro e das roupas de couro que torna esses símbolos sexuais? Em qualquer outro momento fora da Parada, esses símbolos ainda seriam sexuais?

Para finalizar, sim, às vezes fetichistas se reúnem em locais específicos para realizar atos. Aqui, temos algo devidamente planejado: um espaço reservado com restrição de idade e política de cuidados básicos, pode ter seguranças, e onde todes que acessam o espaço sabem o que está acontecendo nele, estão cientes para o que estão concordando. Quem curtir, vá. Quem não curtir, não vá. Simples, não? E isso é do interesse de grupos que organizam as Paradas. Afinal, a última coisa que precisam é de escândalos. Não apenas na Parada, mas outros eventos similares costumam ter suas divisões: uma parte para família, uma parte mais sexual. Há eventos focados em algo mais festivo e para todas as idades. Há eventos focados na livre expressão sexual. E o mundo não acabou até aqui.

E seguimos em frente (mesmo dando passos pra trás)

Talvez haja uma mistura de desconhecimento da história com moralismo sexual em toda essa reação extrapolada des jovens atuais. Como muites estão crescendo com acesso à Internet, tendo comunidades virtuais como referência de contatos e informação, é uma consequência infeliz que tanta gente traga discussões como essa, que estão distantes da realidade prática e do que a comunidade historicamente já construiu.

Essa discussão toda ainda envolve uma questão geracional. Falando, especialmente, daquelus nascides na década de 1990 (como eu) e a partir dos anos 2000, essas gerações puderam acompanhar e ainda estão acompanhando outro período da história da comunidade LGBTQIAPN+. Essas gerações não acompanharam o início do movimento, naquelas épocas em que ser dissidente sexual e de gênero era algo muito mais patologizado e também criminalizado, com toda a represália policial, o descaso das instituições com qualquer necessidade básica (como saúde), e demais dificuldades que, atualmente, estão mais amenizadas graças às conquistas de décadas de ativismos.

Imaginem essas gerações passadas, vindas de todo esse contexto, que iniciaram um movimento de emancipação sexual do zero, sendo repreendidas por gerações mais novas por estarem manifestando sua sexualidade após anos e anos lutando exatamente contra esse tipo de repreensão. Faz parecer que retrocedemos. Não apenas isso, como parece que há esforços para se retomar o mesmo puritanismo que diz que qualquer coisa fora da heteronorma é vergonhosa, nojenta, depravada, e mais qualquer palavra estigmatizante que quiser. Vindo de jovens, ainda mais jovens da suposta era da informação, isso é muito preocupante.

E só ressaltando que qualquer pessoa de qualquer idade tem todo direito a não se sentir confortável com temas de sexualidade. Contudo, o desconforto não é desculpa para marginalizar mais pessoas por causa de sua sexualidade. Aprendam a separar as coisas.

Há muitas coisas muito mais importantes para estarem sendo discutidas do que fetichistas na Parada. Espero ter elucidado melhor esse tópico. O que deveríamos estar fazendo é trazer aos eventos de orgulho seus princípios originais: emancipação dos corpos dissidentes. E ela não virá sem radicalidade, sem a queda do sistema.

Links adicionais:

YouTube | Jessie Gender – Por Que Fetiche é Inerente à Parada (& Por que É Complicado) (em inglês)

YouTube | Brennen Beckwith – A Discussão Fetiche Na Parada É Uma Distração Frustrante (em inglês)

YouTube | djmuel – Por que fetiche pertence na Parada (em inglês)

The Washington Post – Sim, fetiche pertence na Parada. E eu quero que minhas crianças vejam (em inglês)

Insider – O debate sobre “fetiche na Parada” divide a Internet, mas a comunidade fetichistas fez parte de protesto e celebração queer desde Stonewall (em inglês)

Vox – Explicado o discurso perpétuo sobre Orgulho LGBTQ (em inglês)

Vice – A Discussão “Fetiche na Parada” Precisa se Aposentar (em inglês)

Gay Star News – As razões do por que fetiches sempre terão um lugar na Parada (em inglês)

Wikipédia – Kink (sexualidade)

Unimed – Educação sexual: como falar sobre sexo com os filhos

Uma longa discussão sobre a definição de bi

Aviso de conteúdo: reducionismo de gênero, assimilacionismo, exclusionismo multi e monossexismo reproduzido, apagamento assexual, menções a termos obsoletos, menções a retóricas e concepções cissexistas e diadistas, contém ironias, contém links externos.

Este é um tópico atual que gera altas brigas e polêmicas. É uma discussão que costuma vir daquela dúvida tão recorrente sobre o que diferencia bi e pan. Muitas respostas surgem daí, algumas explorando as devidas nuances, outras querendo encerrar o assunto com poucas palavras, ainda há muitas explicações erradas sendo espalhadas, e agora há aquelas que aparentam dar a solução definitiva para o problema.

Não é um assunto que se esgotou, por bem ou por mal. E concordo que a definição de bi está em disputa, assim como quase qualquer outra definição. Talvez esse texto nunca chegue a certas pessoas cujas ações e premissas serão criticadas aqui. Ou talvez chegue e nem seja lido até o fim, ou será lido superficialmente, ou será lido e ainda assim desconsiderado para a conveniência delas.

Também gostaria de dizer que há coisas mais importantes para se discutir do que o que difere bi e pan. Seria ótimo se houvesse mais discussões focadas nas questões paralelas e cruzadas entre essas e outras comunidades multi, e não buscas estressantes pelo que deve diferenciá-las. Contudo, discutir definições não é um tópico dispensável. E ao contrário do que muites possam achar, discutir definição de tal comunidade não é problema apenas dessa tal comunidade. Se essa definição está envolvendo outras comunidades, alguma parte na discussão elas têm também. É o que esteve acontecendo com uma definição de bi que esteve sendo pregada tão impositivamente por pessoas, páginas, grupos e movimentações; e isso tanto na lusosfera quanto fora dela.

Nos últimos anos, e acredito que esse fenômeno ganhou muito mais força a partir de 2020 (quando começou a pandemia e pessoas tiveram muito mais tempo na Internet), esteve havendo nas redes sociais populares manifestações frequentes de pessoas bi e de outras orientações defendendo o seguinte: que bi é atração por todos os gêneros. Não há espaço para discussão. Por vezes, nada é explicado. É atração por todos os gêneros. Pronto, é isso. É muito fácil encontrar pessoas defendendo isso como algo absoluto e inquestionável. E então vem uma pergunta: de onde isso está vindo?

Antes de tudo, acho importante pontuar algumas coisas que muites falham em compreender sobre temas de diversidade. Primeiro: definições mudam de tempos em tempos e entre locais e contextos diferentes. Segundo: definições gerais de identidades não são (e nem devem ser) seguidas tão rigorosamente; pois as experiências são múltiplas e subjetivas, não conseguem ser prescritas ou homogeneizadas. Terceiro: nossos conceitos são construídos conforme as discussões avançam; por isso tendem a mudar, mas nem por isso devemos aceitar sem senso crítico qualquer proposta de mudança. Minhas dicas para todes são: pensem, questionem, reavaliem. Sempre. Com toda essa linha de raciocínio, posso começar a discussão.

  • Discutindo sobre atração, orientação, identidade

Precisamos começar falando sobre atração, orientação e identidade. As premissas que quero trazer para questionamento são o início do problema todo, e se referem a como estão tratando esses conceitos.

Se fosse para resumir o que entendemos por tudo isso, acredito que seja adequado colocar dessa forma:

– Atração pode ser descrita como a vontade de ter algum tipo de interação com alguém. Essa vontade é involuntária e multifatorial.

– Orientação pode ser descrita como as condições para que uma atração ocorra.

– Identidade (sexual, romântica, platônica, enfim) pode ser descrita como uma categoria com a qual uma pessoa se reconhece e usa para descrever sua orientação/atração partindo de sua experiência de vida.

Pode ser confuso diferenciar identidade sexual de orientação sexual, por exemplo, por serem constantemente usadas como sinônimos; o mesmo acontece com o termo sexualidade (que é mais abrangente que atração e orientação). Mas se considerarmos que, por vezes, duas pessoas podem ter orientações “iguais” (como ambas se atraírem por qualquer gênero) e usar identidades diferentes, a separação faz mais sentido. A identidade evidencia melhor como perspectivas e contextos variades interagem com orientações mesmo quando podem ser consideradas iguais.

As identidades conciliam tanto um aspecto pessoal e subjetivo quanto um aspecto coletivo e objetivo; o que poderíamos até considerar uma “contradição”, mas isso é inevitável por sermos individualidades e coletividades e pela nossa situação atual no mundo, onde necessitamos de termos mais conhecidos para fazer política, e termos menos conhecidos podem ser englobados por esses ou ao menos serem de uso particular de quem deseja se descrever de outras formas por quaisquer motivos. E já deixo aqui muito bem claro que todos os termos são políticos, pois todos descrevem formas de existência, e toda existência é política num mundo onde tais existências precisam da política como resistência e sobrevivência.

Afinal, o que entendemos por atração? Essa é uma característica muito ampla, diversa, sujeita a mudança ao longo da vida, e que se molda ao tempo e local. Tratar isso com simplismo é contraprodutivo. Podemos até falar em atração imediata, desenvolvida, primária, secundária, em atração fixa e fluida, em atração por um gênero, mais de um, nenhum, e etc. Podemos tentar catalogar tipos e subtipos, condições e fatores que a determinam, situações e circunstâncias que a influenciam. Nada disso é suficiente. Palavras jamais serão suficientes.

É o senso comum de uma sociedade colonizada, fundada no binarismo ocidental de sexo-gênero que: só existem dois sexos, esses sexos pré-definem duas categorias sólidas de gênero, que a atração funciona apenas na percepção que temos de um dos gêneros, que todo mundo corresponde a algum desses gêneros. Essa construção ainda deve permear em nosso consciente e subconsciente mesmo após todas as discussões trazidas por corpos dissidentes desse binarismo – em especial intersexos, trans e não-binários. Como tais discussões já trouxeram, atração não se resume a uma leitura imediata do sexo-gênero de um corpo. Corpos dissidentes desafiam isso apenas por existirem. Leituras falham, podemos presumir um gênero errado de alguém. Sexo não é um critério objetivo de atração, e qualquer coisa que presumimos do corpo alheio é problema nosso. E, como sempre faço questão de ressaltar, estamos partindo de uma premissa colonialista, a mesma que se espalhou pelo mundo através de processos históricos de invasão e violência, a mesma que apagou e exterminou tantas pessoas de inúmeras culturas não-ocidentais. Por fim, novas ideias podem ser exploradas com o próprio avanço da sociedade, que não é tão estática quanto parece, e a própria não-binaridade enquanto um potencial de atração está sendo explorada também. Desconsiderar a questão do colonialismo e a mutabilidade do mundo só favorece o mesmo conservadorismo que se sustenta nesse binarismo – que já se provou como muito falho e fadado a acabar.

Ah, e não preciso de tese acadêmica ou pesquisa científica para comprovar que atração é complexa, as vivências das pessoas já comprovam isso muito bem.

  • Sobre termos e as definições de bi

Falando sobre termos então. Todos os termos surgem de contextos próprios, o que envolve época, cultura, mentalidade, demanda política, linguagem, e tantas outras coisas. Todos os termos são invenções, assim como todas as palavras e concepções. O mesmo vale para o termo bi. Assim como toda construção, esse termo passou e ainda passa por disputas de definições e narrativas. Comunidades politizadas já estavam há décadas defendendo uma noção revolucionária de bi como rompimento das lógicas binárias de atração e relação.

Bi passou por várias definições: atração pelos dois sexos, pelos dois gêneros, por homens e mulheres, por dois gêneros, pelo mesmo gênero e o gênero oposto, pelo mesmo gênero e um gênero diferente, por gêneros similares e diferentes, por mais de um gênero, atração por dois ou mais gêneros, e mais algumas. Considero essa diversidade de definições uma parte belíssima da comunidade bi – ela registra bem como as discussões de atração e gênero nunca foram estáticas, como foram sendo levantadas de vários jeitos.

Ainda assim, mesmo com esses fatos sendo trazidos cada vez mais, é fácil perceber uma discrepância entre o que se fala entre as massas e entre os movimentos, que informações são passadas e repassadas em espaços e locais diferentes. Existe ainda o imaginário popular de bi implicar dois, que condiz com “os dois sexos/gêneros”. E ainda há uma enorme falta de comunicação entre o que os ativismos entendem e o que as várias camadas sociais entendem do assunto. É uma grande confusão mesmo. Não é culpa da comunidade bi.

Precisamos separar o que pessoas e movimentos organizados entendem por bi. Com pessoas, me refiro tanto a pessoas bi quanto pessoas que não são bi. E comunidades podem surgir tanto de pessoas de dentro dos movimentos como também de fora. Exatamente por isso que existe tanta divergência de discursos de pessoas bi e não-bi sobre o que é bi. O termo bi está sujeito a todo tipo de interpretação que pode partir de todo lugar. Quem acha que só existem dois sexos, pode assumir que bissexual implica em quem se relaciona com eles. Uma pessoa que só conhece os gêneros binários e se atrai por eles vai assumir que ser bi é apenas isso. Alguém que teve desde sempre contato com espaços bi atualizados que passam outra definição estarão de acordo com ela.

Pessoas de fora dos movimentos, aquelas mais sujeitas a entender questões de atração e gênero pelo escopo dos sensos comuns, vão entender e explicar bi de forma binária e normativa. Pode ser quem diz que bi se atrai só por pessoas cis. Pode ser quem diz que bi se atrai por homens e mulheres, cis ou trans. Há ainda quem ache que bi é qualquer pessoa que tenha transado com homens e mulheres, desconsiderando a importância da atração como fator principal da orientação. Há quem ache que bi se resume a situações momentâneas, como estar numa balada e beijar qualquer pessoa. E há quem ache que bi é apenas confusão, promiscuidade, e outras retóricas monossexistas típicas.

Óbvio que essas discussões não devem legitimar quaisquer perspectivas monossexistas, nem perspectivas de pessoas bi que dizem se atrair “só por pessoas cis” ou “só pelos dois sexos” – qualquer perspectiva que exclua pessoas cisdissidentes e intersexo. Nada disso deve ser considerado, pois estamos rompendo com sensos comuns e buscando a politização das pessoas, e compreendemos que nenhuma orientação exclui pessoas por modalidade de gênero ou anatomia sexual. Devemos criar e nos alinhar a movimentos políticos comprometidos com a quebra dos sistemas opressivos. A história do movimento bi internacional traz muito disso.

Continua sendo um desafio exaustivo explicar sobre isso, conscientizar as pessoas (dentro e fora da comunidade LGBTQIAPN+) sobre a singularidade da identidade bi e todo seu potencial. Não é uma identidade exclusivamente binária, jamais excluiu corpos cisdissidentes. E a comunidade bi internacional tem um histórico de inclusão desses corpos. O que foi produzido foi passado pra frente, o que se manifesta em comunidades abertas e amplas e que compreendem o ser bi como algo abrangente e diverso.

Junto à história da comunidade bi temos as histórias das outras identidades multi, sendo pan e poli as mais conhecidas. Assim como a história da identidade bi, essas também foram apagadas, também foram sujeitas a muitas interpretações. E até hoje isso se repete, havendo pessoas multi e não-multi passando definições e explicações erradas de bi e das outras orientações. Talvez a maior luta dos corpos multi gire em torno da agência da informação sobre eles.

  • De onde vem a definição de atração por todos os gêneros?

Eu trouxe uma história positiva sobre o movimento bi até então, né? O que poderia ter dado errado então? Qual é o problema da definição de “atração por todos os gêneros”? O que isso implica para a comunidade bi e outras comunidades?

De todas as vezes em que alguém se prestou a explicar por que bi seria atração por todos os gêneros, com exceção da explicação de que “o fator gênero é irrelevante na atração”, consigo resumir as ideias em três respostas principais. Às vezes, elas vêm juntas. E outras possíveis respostas acabam sendo derivações dessas. As respostas são:

1- Bi é atração por todos os gêneros, pois todas as pessoas só possuem duas leituras sociais de gênero, e bi se atrai obrigatoriamente por ambas.

2- Bi é atração por todos os gêneros, pois todo o espectro de gênero se resume às qualidades masculine – neutre – feminine, e bi se atrai obrigatoriamente por todo o espectro.

3- Bi é atração por todos os gêneros, pois a comunidade bi sempre se reconheceu dessa forma e tal fato está explícito n’O Manifesto Bissexual.

Sinceramente, as respostas 1 e 2 são quase a mesma coisa. A 2 ainda tenta (miseravelmente) ser mais decente e considerar que há pessoas que fogem dos arquétipos de masculine e feminine. A 1 é o senso comum que já pontuei, e por isso mesmo é tragicômico como tem supostes ativistas e militantes defendendo isso como uma coisa revolucionária – incluindo pessoas não-binárias. A 3 é interessante tanto pelo revisionismo quanto pela interpretação do manifesto.

As premissas das respostas 1 e 2 serão exploradas depois junto com a questão das reformulações forçadas feitas em cima das orientações multi. Está tudo dentro dos mesmos tópicos.

Focando na resposta 3, o que exatamente O Manifesto Bissexual diz sobre o que é a bissexualidade? Acompanhem minha análise dele. Bissexualidade é uma identidade completa e fluida. Interessante o uso da palavra identidade. Aqui está afirmando que é uma identidade legítima e singular por si só, que não é parcialmente algo, e que é fluida, um adjetivo muito usado para se referir a mudança e variação de muitas formas. Não presuma que bissexualidade seja binária ou duogâmica por natureza: que temos “dois” lados ou que devemos nos envolver simultaneamente com ambos os gêneros para sermos seres humanos completos. Aqui, acho intrigante o trecho falar em “não presumir ser binária” e depois o uso de “ambos os gêneros”. Faz sentido para o devido contexto da época, em que o senso comum era que existiam dois gêneros e que bissexuais se relacionariam com ambos de alguma forma. Mas a parte da presunção de uma binaridade pode ser interpretada de dois jeitos: a) não presumir que bissexuais se relacionam apenas com dois gêneros (pelo contexto, os gêneros binários), e b) não presumir que a bissexualidade é composta por dois lados, como se fossem uma dissociação da pessoa que a faria ser de duas maneiras distintas (talvez aqui fale no campo afetivo/sexual). Tanto que, em seguida, há uma elaboração sobre dois lados e relação simultânea com homens e mulheres (duogamia). Parece haver aqui uma sobreposição de possíveis sentidos tanto de binária quanto de duogâmica; consequentemente, toda a citação seguinte pode se relacionar com ambas as palavras – o que tem lógica, pois a duogamia implica automaticamente numa binaridade de gênero e a palavra binárie pode ter muitas interpretações desde que envolvam alguma dualidade. De fato, não presuma que só existem dois gêneros. Reforço da ideia de que existe algo para além do binário de gênero. Isso poderia ter partido de qualquer manifesto, mesmo que homossexual ou gay/lésbico, mas veio de um conteúdo bissexual, que se propôs a comunicar ao mundo que pessoas bi podem ser potencialmente atraídas por mais de dois gêneros.

Portanto, assimilando as ideias manifestadas, o que consigo tirar do manifesto é que a identidade bi é algo que pode ultrapassar o binário de gênero. Pode, possibilidade. E reforçou o reconhecimento da existência de que há mais gêneros além dos binários. Não consigo tirar daqui a interpretação de que “todas as pessoas bissexuais se atraem por todos os gêneros possíveis de existir”. O manifesto traz uma mensagem muito mais aberta que restrita do que pode ser a bissexualidade.

Por mais que eu admire o conteúdo do manifesto e o considero como um documento histórico da comunidade bi, preciso pontuar que o manifesto surgiu de um contexto específico e assimilou as perspectivas de uma parte da comunidade bi internacional. O manifesto ainda implica numa atração pelos gêneros binários, sendo que é possível ser bi e não se atrair por um ou até mesmo ambos. O manifesto começa afirmando que a identidade bi é completa e fluida, então é evidente que suas palavras não pretendem impor uma noção única de bi. O manifesto veio de uma época em que as discussões sobre não-binaridade de gênero ainda estavam sendo iniciadas, não havendo ainda uma ideia tão concreta como a que estamos tendo agora da complexidade de gênero. É muito possível que quem fez o manifesto poderia considerar sua atração como direcionada a um espectro maior de gênero, mesmo que limitado entre masculine e feminine, sendo que esses dois espectros podem ou não estar inclusos em algumas experiências bi. Meu ponto é: existe um potencial maior da experiência bi que não consegue ser descrito pelo manifesto. Falarei mais disso depois. Por fim, bissexualidade não é uma corrente filosófica onde todo mundo que adota esse termo pensa igual. Fazer esse revisionismo da comunidade bi como se ela inteira tivesse sido sempre inclusiva com pessoas dissidentes de gênero é muito absurdo, não condiz nem com a atualidade. Se fosse assim, bissexuais cissexistas ou exorsexistas não existiriam.

Indo agora para a pior parte da discussão: as respostas 1 e 2. Qual é o problema delas? Dentro de uma mentalidade colonizada, elas parecem fazer mesmo sentido. Entendo isso, entendo que ainda podem fazer parte das experiências alheias. Parece haver sentido que nossa cabeça só consiga fazer duas leituras sociais de gênero. Parece haver sentido que gênero só consiga existir numa linha que só possibilita três qualidades. Mas isso ignora bastante coisa. Acho que uma parte já está explicada até aqui. Vou explicar mais.

Nosso entendimento atual de atração baseada em gênero nos oferece definições muito simplificadas: atração por um só gênero, por homens, mulheres, pelo mesmo gênero, por dois gêneros, múltiplos gêneros, e tantas outras. Acredito que essa simplicidade é o que torna essa concepção ainda funcional (não é perfeita, mas funciona). Esse “gênero” não desenvolve nada ao mesmo tempo que envolve tanto, mesmo que pensemos direto em identidades de gênero. Além da identidade, o fator gênero pode englobar expressão de gênero, alinhamento, qualidade, papel, performance, e o que mais for possível dentro do tema gênero, incluindo até o sexo, a corporalidade. É uma combinação de coisas, não apenas uma. Por isso que tentar entender atração como apenas uma dessas coisas nunca será suficiente. Aspectos como expressão, alinhamento e sexo sequer conseguem ser critérios consistentes devido a suas muitas nuances e por poderem cair em subjetividades.

Esses conceitos se estabeleceram por décadas e continuam sendo usados. Mesmo assim, surgiram “propostas” (com aspas porque estão mais pra imposições mesmo) de reformular as atrações trocando o fator gênero por alinhamento (de gênero), porque alinhamento seria supostamente o verdadeiro fator que determina a atração.

E o que é alinhamento? O conceito de alinhamento teve algumas versões e interpretações problemáticas. Começou como uma forma de dizer que alguém é alinhade ao gênero designado. Foi alterado para uma forma de descrever a proximidade de alguém com uma identidade de gênero sem pertencer a ela. E agora se tornou um conceito mais amplo e subjetivo para uma conexão com identidades/qualidades de gênero. Até aqui, tudo bem. Apenas conceitos procurando trazer mais sentido para vivências e perspectivas de pessoas fora do binário.

Porém, muitas pessoas deram seu próprio sentido de alinhamento: uma forma “polida” de dizer que alguém “se apresenta socialmente” mais como homem ou mulher. Como se pudéssemos enfiar todas as bilhões de pessoas em arquétipos normativos de gênero (que são frágeis e aos quais ninguém corresponde totalmente). Algumas pessoas até contornam isso, partindo do pensamento de que todo mundo só consegue manifestar qualidades masculinas e femininas de gênero (de novo, colonialismo); algumas “mais inclusivas” adicionam a mistura das qualidades como uma terceira opção (mais ou menos íntegra). Com toda essa lógica construída, ficou mais fácil aglutinar toda não-binaridade com o binário, e, para finalizar, justificar que só existem quatro orientações – hétero, gay, lésbica, bi. Às vezes, alguém lembra de assexual – então se tornam cinco. Sim, pessoas não-binárias também só podem ser dessas orientações. O mundo inteiro se divide em quatro/cinco orientações. Pessoas mono se atraem de masculine a neutre ou de feminine a neutre. Pessoas bi se atraem por tudo. Todo mundo se atrai por não-bináries. Final feliz. Só que não…

  • E as outras orientações multi?

Essa reformulação toda pode até parecer inocente e coerente para muita gente desavisada, ainda mais quando sequer há uma devida elaboração e sendo apenas afirmações jogadas como verdades por supostas autoridades no assunto. Por isso faço questão de sempre apresentar toda essa lógica como o imenso lixo teórico que ela é. E agora com atração sendo reformulada assim e orientação sendo dividida em apenas quatro/cinco identidades, isso abriu o precedente para uma guerra de narrativas e desinformações nos meios virtuais.

Partindo da lógica de que pessoas se atraem ou por um alinhamento ou por todos, e essa seria a justificativa de bi ser atração por todos os gêneros, vem a pergunta: como ficaram as outras orientações multi? Bem, a partir disso tudo surgiram certas “vertentes”. Acho que posso separá-las em três principais:

1- Pessoas reformulando todas as orientações multi para atração por todos os gêneros, para assim manter uma suposta validade de todas.

2- Pessoas validando apenas bi e pan e colocando orientações que podiam descrever atração por mais de um mas não todos os gêneros como “impossíveis”.

3- Pessoas assimilacionistas se movimentando contra qualquer identidade multi que não fosse bi.

Muitas pessoas pan foram apoiando essas reformulações achando que apenas reforçaria a luta coletiva de bi e pan; porém, não demorou pro discurso de “bi e pan são a mesma coisa” se tornar “bi veio primeiro, pan não é necessário”. Confesso que não simpatizo nem um pouco com as pessoas pan que ajudaram a atacar orientações como poli e omni nesse processo. Elas mereceram o que veio depois. Essa história trágica da reformulação de bi é uma ótima aula de como exclusionismo opera. A tática usada aqui foi a da abstração dos termos ao colocá-los como sinônimos; quando você coloca as duas coisas como iguais, fica mais inserir alguma lógica que valida uma coisa em detrimento da outra. Afinal, para que dois nomes para a mesma coisa?

Em meio a essa guerra, por mais incrível que pareça, surgiu alguma resistência que procurou fazer as outras orientações serem o mais próximas de bi (e pan) e tornar o contexto de cada uma o detalhe menos relevante. Iniciativa bacana, mas imaginem o quanto é cômico ler uma sequência de postagens definindo bi, pan, poli, omni e ambi como “atração por todos os gêneros” sem elaborar mais nada. Mais cômico que isso só essa definição de poli: “atração por todos os gêneros, mas não por todos”. E essa tal resistência não larga do conceito de alinhamento como fator de atração; infelizmente, isso torna seus esforços inúteis desde o início devido às falhas desse conceito.

Pessoas “mais inclusivas” estiveram tentando incluir a possibilidade de atração por mais de um mas não todos os gêneros. Chegou a mim a definição de poli como “atração por um alinhamento binário e todos os alinhamentos não-binários”. Aprecio a intenção, mas… a) duvido que alguma comunidade poli foi consultada sobre isso; b) a identidade poli foi feita para ser ampla – e, mesmo sendo uma vivência possível, essa definição não contempla todas as possibilidades; e c) continua havendo um resquício de lógica colonialista, pondo a atração por um gênero binário como imprescindível e atração exclusiva por não-binaridade como impossível.

Minha solução pra tudo isso: ignorar todas essas reformulações e permanecer com o que já existe.

  • A posição e situação dos movimentos atuais

E como os movimentos bi estão em relação a tudo isso? É difícil dizer. A nível internacional, ainda é possível constatar que a grande maioria das entidades ativistas compreende bi como uma identidade mais ampla, geralmente definindo-a como atração por mais de um gênero ou atração por dois ou mais gêneros. Na prática, são a mesma coisa, mas podem ter contextos um pouco diferentes. Eu confio bastante nas entidades internacionais, não esperava outra coisa delas. A nível nacional, parece estar havendo sim alguma disputa de narrativas entre quem quer construir uma comunidade mais aberta e… essa galera toda aí que estou criticando. O coletivo Bi-Sides, o primeiro coletivo bissexual brasileiro, ainda valida a definição de atração por mais de um gênero e demonstra interesse em unir pessoas bi e outras pessoas multi.

Porém, curiosamente, váries figuras e grupos que se posicionam com frequência em prol de uma comunidade mais inclusiva estão num estranho silêncio em relação ao tal manifesto brasileiro lançado em 25 de setembro de 2021.

O Manifesto Bissexual Brasileiro, embora tenha falado bem das demandas bi, começa os dois primeiros parágrafos em controvérsias. No primeiro, coloca bimisia como a opressão estrutural que atinge todes es monodissidentes – colocando todas as pessoas multi como alvos de bimisia (assimilacionismo) e cometendo o grande erro de pensar apenas em pessoas multi como monodissidentes (apagamento assexual). E no segundo parágrafo diz que bissexuais são pessoas “para quem o gênero não é um fator determinante da atração sexual ou afetiva.” Engraçado como logo em seguida afirma que não existe jeito certo ou errado de ser bi. Não, não tem jeito errado… só se você for bi e gênero for determinante na sua atração.

*Adendo (28/7/2022): e o manifesto fica pior! Confesso que eu não tinha lido mais que dois parágrafos. No quarto parágrafo simplesmente coloca a monodissidência como termo para “pessoas para quem o gênero não é um fator determinante em sua atração sexual e/ou romântica, como bissexuais e outras pessoas não monossexuais”. Ou seja, também decidiu tomar a narrativa por todas as pessoas monodissidentes – o que não surpreende vindo de um grupo bissexual com mentalidade assimilacionista (parte da Frente tem histórico de atacar outras identidades multi, aliás).

Isso escancara pra onde uma parte do ativismo bi brasileiro está caminhando, qual parte da comunidade decidiram representar, e o quanto continuam com uma ideia tão limitada de monodissidência. Por mais que tenham falado das questões bi, é preocupante como a semântica nos permite interpretar todo o resto do manifesto. Ora, se bi/monodissidente é somente quem não considera gênero determinante na atração, então só essas pessoas bi/monodissidentes é quem estão sendo referidas no manifesto todo. Só elas importam. Será que ninguém pensou nisso enquanto redigia esse lixo? É por essas e outras que percebo o quanto certos ativismos nacionais são atrasados, mesmo quando estão indo um pouquinho mais pra frente.

Não sei mais o que sentir em relação a esses coletivos bi, em especial aqueles que participaram da produção do manifesto. Sigo apoiando qualquer mínima iniciativa de pessoas bi que queiram construir uma luta verdadeiramente coletiva com outras pessoas multi, mesmo que sejam pessoas de nichos ou movimentos pequenos.

  • O potencial da identidade bi e sua relação com outras orientações

Gostaria muito que retomássemos o potencial de uma definição mais aberta de bi e as similaridades entre as orientações multi. Toda essa briga por conceitos e distinções parece nos fazer perder nosso objetivo nos ativismos sociais e nosso senso de união enquanto comunidade.

Tive contato com muitas experiências bi, desde aquelas mais simples até mais complexas, desde aquelas que se encontram com o senso comum até aquelas que vão mais além. Por isso defendo que a identidade bi seja o mais aberta possível a toda experiência de atração por mais de um gênero. Não importa a quantidade, o que determina a atração, a presença ou não de fluidez, se há preferências, e etc.

Eu não advogo contra pessoas bi que consideram que sua atração é determinada por leituras sociais ou pelo que entendem por alinhamento. São experiências como quaisquer outras. Particularmente, acho que uma atração que funciona assim pode ser descrita como atração exclusiva pelos gêneros binários. Tudo bem ser bi e se atrair apenas por homens e mulheres. Não entendo como isso se tornou um problema. Chega ao ponto de haver gente dizendo que aquelus com essa atração não podem ser bi e que são cissexistas. Da mesma forma que não há sentido em afirmar que uma pessoa que só conhece os gêneros binários e sente atração por eles é atraída por todos os gêneros. Como cobrar a ciência dessa extensão da atração de quem não tem o conhecimento que tal extensão existe?

O problema da narrativa é colocar que toda pessoa bi deve atender a uma forma de atração. Existe uma enorme diferença entre dizer “eu sou bi porque gênero não é determinante na minha atração” e “pessoas bi têm uma atração em que gênero não é determinante”. Uma afirmação fala de sua experiência e como ela se encontra com o termo bi. A outra afirma que todas as pessoas bi têm a mesma experiência. E, aliás, se sua atração só funciona na percepção de dois gêneros, então ela é determinada por gênero. Se gênero não determina a atração, então a percepção de gênero não importa – algo que pode ser compartilhado entre muitas pessoas multi, em especial bi e pan.

Experiências de atração por mais de um mas todos os gêneros são reais, possíveis, concretas. E pessoas com essas experiências podem se identificar como bi. Tais experiências podem se basear em identidade de gênero, podem considerar espectros de gênero, podem cruzar atrações de tipos diferentes (como sexual e romântica), podem envolver fluidez na atração, e podem fazer parte dos espectros de ausência de atração.

Uma pessoa pode ser bi mesmo se atraindo por gêneros presumidos, por considerar a identidade de gênero de pessoas não-binárias relevantes. Uma pessoa pode ser bi incluindo suas relações com pessoas não-binárias mesmo elas fazendo parte de atração secundária ou desenvolvida. Uma pessoa pode ser bi ao se relacionar com alguém de um gênero binário, essa pessoa transicionar para algum outro gênero, e a pessoa perceber que sua atração permaneceu.

Uma pessoa pode ser bi por se atrair por mais de um espectro de gênero, que pode envolver o espectro masculino e mais outro(s), o espectro feminino e mais outro(s), ou dois ou mais outro(s) espectro(s) que não seja(m) masculino e feminino. Uma pessoa pode ser bi se atraindo por um espectro binário e outro(s) dependendo de sua afinidade com pessoas desses espectros e essas qualidades. Uma pessoa pode ser bi se atraindo por espectros distantes dos binários por ter uma experiência positiva com pessoas não-binárias e negativa com pessoas binárias.

Uma pessoa pode ser bi por ter atração sexual por um gênero e atração romântica por outro se considerar que essa experiência se alinha com outras experiências bi.

Uma pessoa pode ser bi fluindo entre períodos de atração exclusiva por homens e atração exclusiva por mulheres se considerar que a totalidade de sua experiência se aproxima das experiências bi.

Uma pessoa pode ser bi mesmo não tendo certeza da extensão de sua atração por estar nos espectros de ausência, tendo sua atração determinada por fatores além de gênero, tendo sua percepção de gênero influenciada por períodos em que frequência e intensidade de atração variam.

Existem muitas possibilidades numa definição ampla. Temos aqui no contexto brasileiro uma possibilidade que envolve a identidade travesti. Por ser uma identidade ampla, que engloba desde travestis que se identificam como mulheres até travestis que se reivindicam fora da binaridade, uma pessoa atraída por homens e travestis ou por mulheres e travestis poderia se identificar como bi dependendo da situação. Podemos considerar situações parecidas em outras culturas não-ocidentais em que há outras identidades além de homem e mulher.

Muitas dessas experiências se encontram com as experiências de outras orientações multi. Isso não é intrinsecamente antagônico. Precisamos pensar que as identidades multi podem ser distintas sem ser divergentes e podem ser complementares. Pessoas podem encontrar uma ou mais comunidades dependendo de seu contexto. Podem se identificar com uma ou mais dependendo de sua afinidade. Mesmo com suas possíveis diferenças, as similaridades são o que fazem todas as experiências multi convergirem. Existe uma potência enorme em comunidades serem mais abertas e comunidades de identidades multi coexistirem.

Uma movimentação em prol de uma definição que restringe a experiência bi e faz antagonismo com outras experiências multi é produtiva? Que impactos pode trazer? No que acrescenta à luta? Passou da hora de pensar nisso tudo.

  • E mais algumas provocações, reflexões, e conclusões

Afinal, a quem favorece a narrativa de que todas as pessoas bi são atraídas obrigatoriamente por todos os gêneros? Considerando suas premissas, só favorece uma parte da comunidade bi que se atrai por todos os gêneros, ou cuja atração se baseia em percepções binárias de gênero (de novo, tudo bem se atrair assim) e que prefere não discutir a complexidade de gênero por não ser conveniente. Esse reducionismo de gênero favorece muito mais pessoas cis que querem só repaginar genitalismo/exorsexismo sob o pretexto da tal “materialidade” (pois, né, elas não têm nada a perder com isso). E quanto às pessoas não-binárias que reproduzem isso, na minha experiência, elas o fazem por três motivos principais: despolitização apenas (reproduzem senso comum sem ponderar); exorsexismo internalizado, que faz com que não acreditem em atração não-binária (por mais que ainda tentem validar a não-binaridade em outros aspectos); e uma vontade desesperada de se incluírem na atração de todo mundo por medo de não serem atraentes para quem querem.

No fim, toda essa narrativa e suas consequências, como os ataques a pessoas multi não-bi, revela o quanto a discussão sobre não-binaridade ainda precisa de muito mais força e desenvolvimento e o quanto a comunidade não-binária precisa trabalhar muito com o exorsexismo interno e externo. E, infelizmente, todos esses anseios estão se tornando apenas reproduções de violências de e entre não-bináries e pessoas multi; afinal, como sempre, é muito mais fácil tentar se assimilar à sociedade e atacar os alvos mais fáceis do que se politizar e romper com essas estruturas opressivas.

Há muitas tentativas de barrar questionamentos válidos. Geralmente, focam em duas atitudes: reafirmações constantes do que já pregam e silenciamento por meio do uso distorcido do local de fala. As lógicas já foram rebatidas. E a cartada do local de fala não funciona mais aqui, porque já expliquei que essa definição não é questão exclusiva da comunidade bi. Jogar a não-binaridade no lixo e se dobrar às normatividades é grave, deve ser apontado, questionado, e enfrentado. E nenhuma pessoa não-binária é obrigada a aceitar ser enfiada em lógicas furadas de um grupo que quer inclui-la em sua atração da maneira que querem, enquanto fingem que estão fazendo um grande favor e lutando por corpos dissidentes. Aliás, tais tentativas também ocorrem com outras pessoas bi que discordam de certas narrativas, o que evidencia não uma troca real de ideias, mas uma seleção delas para a conveniência de um grupo que quer tomar a narrativa para si. Que tipo de “comunidade” é essa?

Aonde estamos indo com tudo isso? Não sei dizer. Esse movimento escandaloso mas frágil que está muito mais presente nas redes sociais dificilmente conseguirá algo de inovador ou muito produtivo. Penso que quando essas pessoas saírem de suas bolhas e se depararem com a complexidade tratada em movimentos já existentes, isso pode resultar em duas situações: a) terão que reavaliar tudo que fazem e pregam, por bem ou por mal; ou b) tentarão fazer seus próprios movimentos mesmo que atrapalhem outros mais antigos, e é pouco provável que irão longe por estarem partindo quase do zero. Imaginem que tragicômico seria uma reunião entre movimentos de várias gerações, aquelas de antes da geração Z falando de atração por gênero e abordando o quão complexa ela é, e então vem a geração Z dizendo que “nos atraímos por leituras sociais” ou “alinhamentos”. É o mesmo que jogar no lixo tudo que foi criado pelas vanguardas dissidentes de gênero e multissexuais.

Mesmo que por ignorância e não intolerância, exclusionismo e assimilacionismo continuam sendo ainda um imenso problema na comunidade LGBTQIAPN+. E cabe a nós, pessoas mais politizadas e que lutam por comunidades mais abertas e inclusivas, disputar definições e narrativas que nos direcionem para frente, para uma verdadeira emancipação de toda diversidade. Por isso, seguirei afirmando: bi é atração por dois ou mais gêneros.

Links adicionais:

Tumblr | Bisexual Dragons – A definição de bissexualidade (de acordo com organizações bi, ativistas e a comunidade) (em inglês)

Orientando – As diferenças (ou não diferenças) entre orientações multi

Instagram | Não-Binariedade Histórica – Como (não) surgiu a pansexualidade

Guia Gay São Paulo – O conceito de bissexualidade passa por mudança, dizem ativistas

Neolinguagem: propostas de adaptações entre línguas diferentes

Aviso de conteúdo: menções a muitas palavras estrangeiras, links externos.

O tópico que trarei aqui será denso por envolver gramática e linguística – embora eu não seja linguista, e quase tudo foi desenvolvido por mim porque é um assunto quase nada explorado. Enfatizo desde já que são apenas ideias, que pode ser que haja ideias melhores depois. E sei que haverá um foco maior em inglês, mas deixarei aqui ideias que podem ser aplicadas para qualquer outro idioma.

Reconheço a dificuldade de discutir algo entre línguas de origens e contextos distintos, pois há coisas que fazem mais sentido numa língua, mesmo havendo palavras parecidas e possíveis traduções em outras línguas, e outras coisas são incapazes de serem trazidas para outras línguas por motivos como a estrutura gramatical e a questão cultural.

As questões de gênero estiveram sendo discutidas em várias línguas, algumas mais recentes, outras mais antigas. Questões de mulheres costumam ser um tanto antigas, enquanto as questões cisdissidentes costumam ser um pouco mais recentes. Pesquisas mostram como certas palavras evoluíram ao longo dos anos, o que inclui os gêneros gramaticais, e isso nos oferece um entendimento melhor de como gênero esteve influenciando sociedades e épocas.

Tais questões de gênero trouxeram propostas de neolinguagens, que são discutidas e formuladas dentro das particularidades de cada língua. É diferente a proposta de, por exemplo, um gênero neutro na língua inglesa (marcada principalmente por pronomes) e na língua portuguesa (onde gênero é marcado em sete das dez classes gramaticais). Apesar de neolinguagem parecer uma novidade desse século, pesquisas e registros apontam a existência dela ao longo da história de alguns idiomas. Neopronomes como thon e ze já pareceram no inglês há décadas. No português, temos até então registrado o caso de êla (apesar de controverso). Outros idiomas ainda estão levantando essas discussões.

  • Sobre métodos de adaptação

A discussão no português sobre um possível terceiro gênero continua sendo desenvolvida principalmente por comunidades não-binárias / cisdissidentes e aliades da causa, estando essas pessoas dentro ou fora da academia, da área de Letras. Até o momento, defendo aqui o uso do conjunto ê/elu/-e tanto por sua popularidade quanto sua aderência; o que pode fazer com que seja oficializado futuramente como um sistema unificado de “gênero neutro”.

Quando penso em métodos para se criar uma adaptação coerente entre conjuntos de linguagem de diferentes línguas, devemos considerar antes se estamos falando só de conjuntos normativos ou também de conjuntos de neolinguagem. Tudo depende de qual para qual idioma.

Se for para adaptar normativos com neolinguagens, isso é mais simples: adaptamos de acordo com o próprio contexto de uso. Se no inglês quem está usando o conjunto they/them singular são pessoas dissidentes de gênero buscando algo diferente dos conjuntos associados aos gêneros binários, e se no português estamos desenvolvendo o conjunto ê/elu/-e para ser usado com essa finalidade (entre outras), faz todo sentido que esses conjuntos sejam a adaptação um do outro.

Agora, se for para adaptar neolinguagens com neolinguagens, entramos exatamente na parte mais complicada desse tópico todo que quero trazer. Acredito que podemos considerar os seguintes fatores: a estrutura de todos os elementos do conjunto, as semelhanças dessas estruturas com as de conjuntos normativos, as intenções envolvidas na cunhagem do conjunto, e o histórico de uso do conjunto.

Acredito que todos os critérios mencionados são os mais objetivos para uma adaptação padronizada em qualquer situação. Pode ser que um padrão não contemple todes que usam determinado conjunto. Por exemplo, faria sentido adaptar para ê/elu/-e os conjuntos ne/nem e ze/hir se alguém os usasse como um “neutro” sem querer usar they/them por algum motivo (por exemplo, por ser também plural). Outros casos de usos por pessoas reais ou personagens fictícies podem precisar de uma investigação melhor, principalmente considerando os motivos de escolha e uso do conjunto e qual a relação de tal pessoa / personagem com gênero (qualidades, expressões, etc).

Há quem queira apenas excluir outras neolinguagens ou jogá-las para alguma opção “neutra”; porém, isso não corresponderia com o que pessoas estão querendo expressar ao escolherem conjuntos que não são apenas um “neutro padrão”.

  • Possíveis nuances das línguas

Devemos também considerar que algumas coisas serão impossíveis de se traduzir ou adaptar da forma mais fiel possível. Por exemplo, o fato de no inglês haver o they plural como pronome epiceno e no português, não. Nossa língua realmente não tem estrutura pra isso, pois nossos pronomes já têm seus plurais definidos pela adição de um s, enquanto o they equivale a qualquer plural e combinações de dois ou mais plurais.

Outro exemplo é como marcamos gênero nas palavras. Os pronomes pessoais – ele e ela – são marcados pela flexão (e/a) e também pela pronúncia (e fechado/e aberto). Um neopronome que poderia “omitir” um gênero seria o el; contudo, ainda seria pronunciado aberto assim como ela, pois, se fechado, soaria igual ao pronome eu. Por isso, não há como ter um pronome verdadeiramente epiceno ou que possa omitir gênero naturalmente, como they ou a palavra one conseguem fazer.

Então o que fazer? Minha resposta é: considerar outros aspectos. Quem geralmente usa they singular, por exemplo, são pessoas querendo algo neutro / indefinido / alternativo em relação aos pronomes normativos, não apenas se prendendo ao possível uso do pronome para omissão de gênero. Ah, lembrando que qualquer marcador de gênero, mesmo normativo, pode ser subvertido e ressignificado.

Pensando nisso tudo até aqui, podemos combinar de adaptarmos sempre para um conjunto padrão de gênero gramatical neutro / indefinido / alternativo, como ê/elu/-e, qualquer marcador ou conjunto de linguagem que em outras línguas tenha essas mesmas finalidades. Além do they singular, pode ser o caso do conjunto elle/le do espanhol, o pronome iel do francês, o pronome hen do sueco, e qualquer outro exemplo que exista ou ainda existirá.

  • Casos extraordinários de opções normativas

Quem defende a criação de um terceiro gênero gramatical e nada mais, ou apenas uma tríade gramatical masculina – neutra – feminina, deveria considerar que: a) as demandas de gênero não acabam com uma suposta neutralidade ou “universalidade”, b) seria incoerente limitar assim as possibilidades de gênero na gramática sendo que fora dela já são inúmeras, c) impedir tais avanços em nossa língua não impedirá em outras e nem o conflito consequente disso, e d) possíveis ressignificações nas gramáticas normativas podem exigir alternativas através de neolinguagem.

Sobre o último item, isso pode ser observado pelo uso do conjunto it por pessoas homo sapiens. Há pessoas que reivindicam e ressignificam o uso desse pronome, que é usado para coisas e objetos, e que não foi pensado para uso pessoal (embora seja usado em contextos negativos como forma de “desumanização”). Pensando numa das traduções de it – aquilo, faz sentido extrair o neopronome ilo direto da palavra (assim como ele e ela estão presentes em aquele e aquela). E para outros acompanhantes, proponho o neoartigo i e a neodesinência -i por serem elementos gramaticais incomuns como marcadores de gênero; assim formando o conjunto i/ilo/-i.

Esse conjunto poderia talvez ser aplicado para outras línguas que reservam um gênero gramatical só para coisas e objetos, se houver pessoas reivindicando seu uso também.

Há mais um caso específico que merece alguma atenção. O conjunto em inglês envolvendo a palavra one, cujo uso é previsto para falar de uma pessoa genérica ou hipotética, sem alguma demarcação de gênero, para o contexto da nossa língua, pode fazer mais sentido adaptá-lo para o conjunto “nulo”, que é sem artigo, sem pronome e sem desinência (-/-/-).

Isso poderia talvez ser aplicado para outras vias gramaticais normativas que sejam focadas apenas em não marcar gênero.

  • Adaptações entre neolinguagens

A seguir, ideias sobre adaptações de conjuntos neopronominais mais populares entre pessoas de países da anglosfera e outres falantes de inglês.

Sobre o conjunto ve/ver (ve/ver/vis/vis/verself), pensando na semelhança com elementos dos conjuntos he (his) e she (her), acredito que o neopronome éli seja uma adaptação adequada, por também ser muito parecido com ele e ela. Outros elementos que poderiam acompanhar seriam neoartigos como e ou ê e a neodesinência -e, na falta de marcadores que possam ser ambíguos ou misturar os sons de o/a.

Sobre o conjunto ze/hir (ze/hir/hir/hirs/hirself), pensando na semelhança com elementos do conjunto she e sua origem do pronome feminino alemão sie, acredito que poderíamos adaptar para êla ou ila. Outros elementos que poderiam acompanhar seriam o artigo a e a desinência -a, ou mesmo o neoartigo ã e a neodesinência -ã como opções de subversão da letra a enquanto um elemento socialmente feminino, ou até uma mistura dessas sugestões. O mesmo poderia valer para os neopronomes zie e sie quando acompanhados das mesmas coisas que ze.

Sobre o conjunto ey/em (ey/em/eir/eirs/emself), sendo quase idêntico ao conjunto they (apenas cortando o th) e tendo sido cunhado para “esconder” o gênero, acredito que um conjunto possível seria sem artigo, pronome el e sem desinência ou neodesinência -‘ (apóstrofo), algo que possa também funcionar como omissão de gênero em nossa língua. O mesmo poderia valer para o neopronome e quando acompanhado das mesmas coisas que ey.

Sobre o conjunto fae/faer (fae/faer/faer/faers/faerself), pensando na semelhança com o conjunto she e sua diferença peculiar em comparação a outros conjuntos – normativos e de neolinguagem, uma possível adaptação poderia ser o neopronome ael acompanhado do neoartigo ae e da neodesinência -ae.

Sobre o conjunto xe/xem (xe/xem/xyr/xyrs/xemself), pensando na semelhança com os conjuntos they e she e o uso de x, talvez uma adaptação coerente seria com o neopronome elx acompanhado do neoartigo x e da neodesinência -x. Aqui o xis poderia ser pronunciado como “cs” mesmo.

  • Mais algumas considerações

Pensar em adaptações não envolve somente apego com pronomes ou com pronomes e certos marcadores como artigos e desinências. Outras coisas podem ser consideradas, como se alguém faz uso ou aceita marcadores mais específicos, como os títulos de pai e mãe. Talvez isso indique que tal pessoa possa vir a usar outros marcadores que acompanham essas palavras e/ou coisas parecidas.

Na língua alemã, existe uma controvérsia em torno do gênero gramatical neutro sendo usado por e para pessoas, pois as normas o colocam como sendo exclusivo de objetos. Caso fosse oficializada uma ampliação do seu uso para pessoas, pode ser que adaptá-lo para algo como ê/elu/-e faria mais sentido do que i/ilo/-i, pois aqui existe a intenção de colocar essa opção de forma “humanizada”.

Uma coisa que deve ser mais considerada é que nem sempre pessoas conseguirão tratar sua língua nativa e as demais como entidades distantes. Por exemplo, uma pessoa lusófona que se sente disfórica com o pronome ele pode não querer usar o neopronome elle do espanhol devido suas semelhanças. Isso pode levar essa pessoa a procurar alguma outra opção, o que justifica haver mais opções.

Enfim, eu apreciaria muito se esse texto fizesse com que comunidades e linguistas se interessassem mais por esse tópico, por deixar evidente o quanto as neolinguagens de línguas diferentes podem interagir entre si. E que isso possa chegar em outras línguas também, em especial aquelas onde neolinguagem ainda é impensável ou está num estágio inicial de discussão.

Links adicionais:

Êla é muito cobiçado: um pronome neutro que não o é

Tradução: O Gênero Neutro Nos Animes

As nuances das representatividades dissidentes nas mídias

Aviso de conteúdo: citação de muitos termos em inglês, menções de retratações dissidentes controversas.

Começo o texto apresentando conceitos e adaptações que serão usades.

Queercoding: poderia ser traduzido como “codificação queer”. É um conceito para personagens que “aparentam” ou “dão indícios de” ser da comunidade, mas sem que isso seja declarado por elus ou fontes oficiais. No texto, usarei o termo “codificade” para falar disso.

Queerbaiting: poderia ser traduzido como “isca queer”. É um conceito sobre propagandas, fofocas, rumores e indícios sobre tal personagem ser da comunidade, mas isso nunca é confirmado ou oficializado. No texto, usarei o termo “engodo” para falar disso.

Headcanon: se refere a quando fãs ou fandom acreditam em algo sobre ume personagem sem que tal crença tenha sido confirmada, ou mesmo que haja informações oficiais que contrariam essa crença; e aqui estou falando no contexto de orientação, gênero, sexo, e etc. No texto, adaptarei para “oficial imaginário”.

Pink money: literalmente, “dinheiro rosa”. É um conceito geralmente usado para quando pessoas, grupos, empresas, marcas ou organizações ganham algum lucro em cima da causa LGBTQIAPN+, como uso de seus símbolos (temática colorida), discursos (“amor é amor”), atos (um beijo aquileano/sáfico “encenado”), e etc.

A palavra representatividade ganhou muito destaque com o avanço dos ativismos sociais, principalmente no meio virtual. É comum encontramos postagens e análises críticas sobre as representatividades nas mídias, abordando se são positivas ou negativas, o que acertaram e o que poderiam melhorar, entre outros tópicos. Aqui, a perspectiva de pessoas de determinados grupos (pessoas politizadas, só ressaltando) é muito importante; afinal, representatividade sempre se refere a grupos subrepresentados ou minorizados.

O texto terá foco em pessoas dissidentes de sexo, gênero, atração e relação. Mas acredito que o conteúdo pode ser aplicado para outros grupos.

Não há “representatividade cis”, ou “hétero”, ou “branca”, entre outras, pois esses grupos já são/estão representados em quase tudo, mesmo quando tais representações são problemáticas ou nocivas. E isso nem importa tanto, já que mesmo essas representações não tornam a realidade desses grupos pior.

Quando o assunto é representatividade, muita gente pode reduzir a questão a representatividade boa e representatividade ruim. E há nuances que podem e devem ser exploradas, considerando contextos históricos e sociais e a complexidade des personagens e suas realidades. Acredito que essa abordagem possa ser útil para analisar representações de forma mais crítica e também ampla.

  • Codificações: artifício ou necessidade?

Acho que um dos maiores exemplos de codificação que temos é da própria Disney. Váries vilanes das animações clássicas possuem traços e trejeitos que es fazem ser associades a “pessoas queer”. Aqui temos Úrsula de A Pequena Sereia com cabelo curto e uma maquiagem chamativa, Scar de O Rei Leão e Jafar de Aladdin com seus jeitos teatrais e furtivos, e Hades de Hércules fazendo um discurso “contra homens”. Há quem diga que a Rainha de Branca de Neve e Cruella de 101 Dálmatas são codificadas. Mesmo assim, várias pessoas da comunidade que cresceram em contato com a Disney se encontraram muito nessus personagens, com menção especial a meninos/homens aquileanes e as vilãs; apesar de más, a feminilidade delas inspira uma rejeição à masculinidade hegemônica.

Só um comentário: é irônico pensar que a Disney fez tanto uso de codificação em vilanes enquanto tem uma representação predominante de famílias não-tradicionais.

Animações mais antigas da Disney possuem também um histórico de usar de estereótipos queers mais exagerados. Considerem que a empresa veio de uma época em que retratações queers eram proibidas, então codificações acabaram sendo um meio de colocar figuras dissidentes mesmo que por uns segundos e com finalidade de comédia.

Pode ser que codificações tenham vindo como uma forma discreta de se colocar a existência de pessoas da comunidade na mídia? Pode ser que sim. É um terreno nebuloso para concluir algo, ainda mais pelo contexto da época e a falta de declarações de produtories – em vida ou póstumas. E pode ser que ainda precisemos de codificações nos tempos atuais. O melhor seria caminharmos para não precisarmos mais delas.

A Disney parece que evoluiu de codificação para engodo de uns tempos pra cá, mesmo que haja exemplos que eu atribuiria mais aos anseios por representatividade do público do que uma iniciativa premeditada da própria empresa. Elsa de Frozen é um ótimo exemplo de personagem em que oficiais imaginários se tornaram pedidos em massa de criação de uma primeira princesa oficialmente queer. Não gosto da ideia de presumir heterodissidência de ume mulher só por não ter nenhum interesse romântico duárico. Elsa poderia até ser hétero e não querer uma relação, aliás. Mas entendo que uma novidade assim, e vindo de uma empresa em que a maioria das animações possuem casais duáricos, uma personagem assim pode trazer… esperança?

Então a Disney não ousou nenhuma representação queer oficial? Hm, bem… eu diria que meio que sim. Apenas uma: Pleakley de Lilo & Stitch. Porém, né, o personagem é um alienígena que encontra afinidade com a feminilidade típica de uma outra espécie de outro planeta. Isso me lembra um pouco umas representatividades assexuais e não-binárias em que personagens são robôs ou criaturas. Estaria a Disney preparando caminho para representações oficiais no futuro? Aparentemente sim, considerando que a empresa mostra algum reconhecimento dos estereótipos negativos que usou por décadas. Vamos aguardar.

  • Representatividade com “não-humanes”

Citei isso no tópico anterior. Qual seria o problema de representações com robôs e criaturas? É uma pergunta também com suas nuances. Tudo depende de contextos.

Primeiro, vamos rebater a pergunta com outra pergunta: por que não fazer logo de uma vez representações com pessoas homo sapiens, ainda mais falando em sexualidade e gênero, dois conceitos que criados e usados por essa espécie?

Podemos até considerar a possibilidade de outras criaturas e até mesmo máquinas terem algum senso de atração e identidade de gênero por algum motivo; como criaturas humanoides que se organizaram de forma parecida com humanes, e robôs serem programados com esses aspectos para algum experimento. Não há um problema inerente em retratações assim, e ainda podem ser ótimas fontes de análises e críticas. A questão é a repetição delas em detrimento de retratações de pessoas homo sapiens.

Talvez isso esteja ficando cada vez menos comum, e cada vez mais esteve aparecendo representações de pessoas não-binárias e assexuais e outros grupos dissidentes. Mas não faz muito tempo que tivemos Peridot de Steven Universe e Double Trouble de She-Ra, ambas séries animadas que retrataram personagens em relações aquileanas/sáficas e diamóricas. Ao mesmo tempo em que ainda temos episódios de apagamento, como o personagem Jughead de Riverdale, que foi colocado como heterossexual mesmo sendo oficialmente assexual nos quadrinhos.

  • Ressignificações de personagens

Há algumes personagens que podem vir a ser ressignificades após um tempo. Mesmo que a retratação tenha sido controversa inicialmente em sua própria época, pessoas de uma época posterior podem reavaliar essus personagens e podem até encontrar nelus alguma afinidade.

Consigo pensar na Doris da franquia Shrek como um ótimo exemplo desse caso. Vejo muitas afirmações superficiais de que ela é uma boa representação, e afirmações rígidas de que é uma má representação. Eu diria que ela é uma representação cinzenta e possível de ser ressignificada. Ela tem um corpo grande e uma voz grave, aspectos geralmente associados com “homens”. Ela é chamada de “irmã feia”, e esses aspectos a colocam nessa posição. Ela fica como coadjuvante no segundo filme. Mas tem mais presença no terceiro filme e é aceita entre as princesas.

É discutível o quanto os aspectos dela são apenas uma piada – o que implica ela ser uma mulher cis, ou são parte legítima de uma personagem trans colocada de forma controversa numa obra infanto-juvenil. Apesar disso, há pessoas agora que podem assistir aos filmes e encontrar algum conforto em ver uma personagem feminina tão inconforme sendo aceita entre várias mulheres e ajudando-as numa cena de ação.

É possível ressignificar sempre? Acredito que não. Personagens muito estereotipades e colocades em contextos muito negativos não têm o que oferecer. O melhor que podemos fazer é usá-les como exemplos para analisar e criticar a mentalidade da época.

  • Dissidências mecânicas em jogos

De uns tempos pra cá, jogos começaram a se abrir mais pra diversidade, deixando para trás o apagamento, a codificação, e algumas polêmicas (como a Poison de Street Fighter). Muitos jogos de estilo RPG e simulação de vida começaram a oferecer opções de relacionamento, atração e identidade de gênero dissidentes. Uma das possibilidades é a de criar ume personagem e poder colocá-le se relacionando com pessoas de qualquer gênero. Muita gente considera isso como uma representatividade multi (bissexual, como descrita na maioria das vezes).

Então me vem aquela pergunta: faz sentido afirmar que ume personagem é multi apenas por poder se relacionar potencialmente por personagens de qualquer gênero? Se isso faz sentido, então podemos afirmar que tal personagem é assexual quando sue jogadore escolhe em não se relacionar com ninguém (seguindo uma expectativa furada do que é ser assexual)?

Quando a possibilidade de ser multi só é uma parte da mecânica de um jogo, até que ponto isso é uma representatividade? Há jogos onde você só pode se relacionar com uma única pessoa, ou um único grupo de gênero (sempre tendo que escolher entre opções binárias), como em Stardew Valley. Chamar isso de “multi” praticamente é a mesma lógica do combo monossexismo-mononormatividade, que diz que pessoas multi só podem escolher “um dos gêneros” e só conseguem existir socialmente como “hétero” ou “homo”. E acho que vale questionar também se as atrações dissidentes têm o mesmo peso nesses mundos, pois em RPGs como Dragon Age parece que não existe discriminação e a necessidade de tais termos.

Isso é representação de verdade? Não tanto. Isso é ruim? Talvez nem tanto. Apelar para representação me parece mais marketing ou ingenuidade na melhor das hipóteses. No entanto, é inegável que oferecer essas opções é convidativo para a diversidade de escolhas e jogabilidade, e uma abertura para que a pessoa possa se colocar ne personagem, ou moldar sue personagem como bem quiser, o que deixa a imersão muito mais confortável. É algo propício também para colocar desejos e fantasias como se fossem oficiais imaginários, como por exemplo, jogar com uma Link trans e expressar isso usando as roupas “femininas” Gerudo.

Porém, se os jogos querem mesmo que sues jogadories se coloquem nes personagens ou construa-es como bem querem, talvez oferecer opções de autodeclaração seja um caminho a se tomar. Algo como, em algum momento, ê personagem poder dizer que “gosta de pessoas”, ou que “prefere outres homens”, que “se atrai por pessoas femininas”, que “se interessa mais por livros e comida”, coisas assim. E a autodeclaração pode coexistir com a mecânica de poder se relacionar livremente com quaisquer personagens disponíveis. Seria mais coerente poder se relacionar com mais de uma pessoa, e também poder ter relações diferenciadas que não sejam apenas românticas (como as queerplatônicas).

  • Oficiais imaginários v.s. livre interpretação

Existe também uma tática mais comum em jogos que é criar ume personagem que é conduzide apenas pelas ações e escolhas de jogadore, sem personalidade, sem uma história, quase uma página em branco que cada jogadore preenche como quer. Isso não é ruim, e continua sendo uma opção válida de imersão. Pode talvez ser algo mais simples em relação a produção e programação.

Com isso, oficiais imaginários podem fluir à vontade, o que atrai muita gente na Internet que adora criar artes independentes (fanart) e histórias inventadas (fanfic).

Ainda assim, quando o assunto é representatividade, acredito que aqui caímos na mesma questão das mecânicas de jogo. Posso usar como um bom exemplo Frisk, ê protagonista de Undertale. Frisk é uma criança humana que é sempre referida pelos pronomes they/them/their (que podemos adaptar para o conjunto ê/elu/-e). A escolha dos pronomes foi feita para que o gênero de Frisk fosse ambíguo, o que permite aes jogadories imaginarem o gênero que quiserem em Frisk. Isso fez Frisk ser considerade uma representação não-binária. Até que ponto uma criança de gênero ambíguo é uma representação não-binária? Uma coisa é o uso de pronomes neutros para esconder um gênero, e outra é ume personagem usando tais pronomes como parte de sua individualidade.

Considero ainda que Undertale desafiou algumas barreiras ao colocar uma criança tratada por pronomes neutros. Mas penso que, no futuro, permitir que jogadories escolham o tratamento de sues personagens seria uma opção melhor, mais progressista. Isso e outros aspectos continuariam permitindo que oficiais imaginários existam e possam ser mais concretos que apenas imaginação.

  • A polêmica das confirmações posteriores

Já adianto a polêmica: personagens confirmades como dissidentes após o término (ou sucesso) de uma obra frequentemente são por dinheiro rosa mesmo.

Acredito que eu poderia citar aqui como exemplo principal o Dumbledore da franquia Harry Potter. A autora revelou anos depois após o lançamento do último livro de que ele era gay. O que começou com mensagens aparentemente progressistas se tornou uma tragédia homomísica. A autora se agarrou no discurso de que não existe aparência para ser gay – o que é verdade. A sexualidade do bruxo foi colocada como “tão natural” que, naquele universo, ninguém se importou com esse detalhe. Mas, porém, contudo… quando chegou um momento oportuno de retratar a sexualidade dele nos filmes Animais Fantásticos, não teve nada do assunto.

O que torna essa representatividade inexistente é o fato de que a franquia sempre retratou atrações e relações duáricas; que, até onde podemos presumir, foram e continuam sendo hétero. Se aquele universo aceita a diversidade sexual, por que ela não aparece em absolutamente nenhum lugar ou momento? A diversidade é tão aceita que chega a ser invisível?

E esse é o problema de quando surgem confirmações por fora das obras, ainda mais quando seus universos nunca exploram a diversidade de qualquer forma, por bem ou por mal. Aqui, eu diria que acaba indo por mal, pois tais universos não foram construídos considerando a existências de pessoas heterodissidentes e cisdissidentes.

Nem tudo que é confirmado por fora da obra é ruim. Mas aqui precisamos tomar aquele cuidado de não criar uma representatividade vazia. Isso pode ser contornado com futuras retratações, sejam elas expansões das obras ou mesmo novas versões (como reboots). Embora isso possa não ser o caso de Bob Esponja, cuja animação já foi encerrada, ao menos podemos esperar isso de Velma, já que a franquia Scooby-Doo está sendo continuada.

Afinal, o que torna uma representatividade boa ou ruim? Acredito que até aqui deixei evidente de que uma representatividade não depende apenas de uma personalidade boa ou ruim. Sendo assim, retratar uma pessoa virtuosa e honesta e uma pessoa egoísta e cruel não implicam em, respectivamente, retratações boas e ruins. Pessoas têm diversas personalidades. Retratar pessoas dissidentes como apenas seres puros de luz e amor seria um tanto irreal. O que pode deixar uma obra controversa é quando a mesma retrata grupos minorizados somente em papéis e contextos negativos.

Não creio numa “representatividade perfeita”, porque não existe pessoa perfeita. E não creio em fórmulas para se fazer ótimas representações. Acredito que tudo depende mais de contextos, e contextos estão sujeitos a mudanças conforme o tempo passa. Podemos pegar o que já existe e sabemos até aqui e criar um senso melhor sobre como construir personagens que sejam, antes de tudo, pessoas críveis; ou seja, pessoas com suas nuances de interpretações e possibilidades.

Links adicionais:

Muro Pequeno | Queerbaiting e representatividade LGBT na mídia part. TV em cores

Indignada | Queerbaiting VS Queercoding: Qual a Diferença?

Jonas Maria | Queer coding: estereótipos LGBTs na cultura pop

Overly Sarcastic Productions | Papo de Tropo: Vilanes Queer Codificades (vídeo com legendas em português)

verilybitchie | Como Bissexualidade Mudou Videogames (vídeo em inglês)

As contradições da cisgeneridade

Aviso de conteúdo: cissexismo, menções a ideias cissexistas e genitálias, sarcasmo.

O sistema ocidental de sexo-gênero imposto atualmente no mundo se passa como algo infalível e inquestionável, construído em cima de uma biologia sexual binária, que é acompanhada de um padrão de comportamentos binários, que justificam uma divisão social binária de bilhões de pessoas. Também, o mesmo sistema se coloca como algo atemporal: a espécie homo sapiens sempre foi e sempre será composta por dois tipos de indivíduos perfeitamente distinguíveis e naturalmente diferentes.

O produto maior desse sistema, a cisgeneridade, é uma imensa ficção que acredita em si mesma, se retroalimenta, e toma todos os meios possíveis para dominar nossa espécie (e até outras) para se validar. Não apenas uma dominância social, biológica, e psicológica, como também histórica, dialética, metafísica, e espiritual.

Apesar de tanto tempo de dominância, se construindo e às vezes reconstruindo, e se adaptando sempre aos períodos e às situações do mundo, a cisgeneridade é, sempre foi, e continuará sendo um abismo de contradições. Contradições que, mesmo quando tão tão evidentes, ainda são ignoradas ou até “desculpadas” devido à grande alienação que o sistema causa nas pessoas.

Começando pela biologia. De binária, ela não tem nada. Já escrevi um texto sobre o sexo biológico ser ou não uma construção social. Mas dando uma resumida sobre o sexo: há outros sexos além daqueles considerados “típicos”, corpos de um tipo sexual ainda podem ser diferentes, criaram-se e criam-se expectativas de pessoas se baseando apenas em sexo, e a tecnologia atual permite várias modificações – algumas socialmente aceitas e incentivadas, e outras que atravessam corpos dissidentes de sexo/gênero. O sistema diz que tudo começa na biologia. Ora, então sua ficção já começa falha, pois pessoas nunca foram e continuarão não sendo reduzidas a apenas dois sexos.

Se se nasce homem e se nasce mulher, por que há necessidade de ensinar o que é ser homem e o que é ser mulher desde sempre para as crianças e es jovens? Ensinar um jeito de falar, um modo de andar, ou “incentivar” (ou melhor, coagir) a atividades específicas? Por que sempre reiterar onde meninos e meninas devem estar e o que devem fazer, separando-es sempre de forma ativa? Se esses gêneros são naturais, inatos, intrínsecos, os indivíduos pertencentes a eles não deveriam seguir seus caminhos por instinto, sem precisar de guias ou instruções, como essus que as “famílias” e escolas dão? Aliás, já pararam pra pensar no quanto essas instituições promovem a maior ideologia de gênero, que é a própria cisgeneridade?

Pessoas cis frequentemente defendem seus gêneros e a cisgeneridade com um apego esquisito a genitálias e órgãos reprodutivos, como se essas coisas resumissem suas vidas, dessem sentido a elas. Há gente que afirma/reafirma que ser homem é ter pênis e ser mulher é ter vulva e útero. Ué, então os gêneros podem ser perdidos em decorrência de uma amputação peniana ou uma remoção necessária do útero. É isso? O gênero “com o qual se nasce” pode ser tirado por tais circunstâncias? O gênero é frágil assim?

Ocasionalmente, gênero parece ter alguma associação com idade, um período específico da vida. Pessoas “se tornam” homens e mulheres com a chegada da puberdade ou da fase adulta (e aqui é mais nebuloso que a puberdade, visto que nenhum país tem a mesma maioridade). Quando há menstruação, a menina se torna mulher. Quando há aparição de características sexuais secundárias, o menino se torna homem. Afinal, se nasce ou se torna? As duas coisas não dá. Então, gênero tem idade? Fases? Não vem pronto, passa por um processo, tipo o girino quando se desenvolve em sapo?

Há também a possibilidade de alguém tornar-se “homem de verdade” ou “mulher de verdade” quando demonstra alguma qualidade, ou passa por uma situação específica. Muitas vezes qualidades como integridade e caráter tornam alguém homem/mulher, ou ao menos uma evolução esquisita do gênero, como “um exemplo de homem” ou “uma grande mulher”, dando a entender que existem tipos e subtipos desses gêneros. Então não é algo homogêneo e pré-definido do nascimento à morte? E esse ritual bizarro de meninos se tornarem homens depois de transarem com a primeira mulher? O gênero depende de um ato então para existir ou se confirmar? O menino que opta pelo celibato jamais será homem?

Para as situações dos dois parágrafos anteriores, fica a pergunta do milênio: e se meninos e meninas têm o infortúnio de uma morte prematura antes de puberdade, fase adulta, e/ou demonstrarem suas qualidades ou provarem seus gêneros em algum ritual social arbitrário? Vamos escrever em suas lápides “não viveram suficiente para ser homem/mulher”? Vamos lamentar suas vidas incompletas enquanto não-homens/não-mulheres? Podemos dizer que estus nunca foram homens/mulheres?

Eu até poderia entrar agora nas questões de sexualidade e expressão de gênero, que também servem como medidores estranhos de hombridade e mulheridade. Mas acredito que não preciso entrar nisso depois de tudo que foi trazido até aqui. Aliás, preguiça de ter que explanar sobre o gênero de homens gays e mulheres bofinho.

Pra um sistema que se diz perfeito e o modelo de existência de toda uma espécie que existe há milhares de anos, ele é muito incoerente consigo mesmo, né? E fica aí a maior questão aqui: como uma espécie que se diz tão intelectualmente desenvolvida segue levando uma coisa dessas a sério? Felizmente, tais contradições estão cada vez mais sendo consideradas, levantadas, expostas. Estamos nos direcionando ao fim de um sistema que nunca funcionou. Avante.

O sexo: biológico ou construção social?

Aviso de conteúdo: diadismo, cissexismo, colonialismo, menções a genitálias e órgãos reprodutivos, terminologias obsoletas, links externos.

Entendo se a pergunta parecer absurda. Quando se fala no sexo ser uma construção social, o que muita gente pode entender é que está se afirmando que os órgãos e as funções reprodutives/sexuais são uma invenção, ou são irreais, apenas uma ideia abstrata. Ninguém está afirmando isso. Muito menos negando as possíveis realidades trazidas pelas possíveis corporalidades. O que está se questionando são atributos, valores e viés com os quais tratamos o sexo. O texto é sobre isso.

  • Uma breve história do sexo e do gênero

Antes de tudo, acho interessante e necessário fazer uma revisão histórica muito resumida sobre como a humanidade lidou com o sexo até chegar aos dias atuais, até existir a concepção de “sexo biológico”.

Diversas culturas e sociedades ao longo da história tiveram suas próprias concepções de sexo-gênero. Em tempos mais remotos, em culturas matriarcais, entendia-se como divina e sagrada a capacidade de pessoas com útero de gerar vida. Outras culturas tiveram suas próprias categorias ou identidades de gênero para indivíduos eunucos, intersexo, ou que não aceitavam os papéis sociais esperados, como no caso de pessoas Sekhet, Tumtum e Burrnesha. Mesmo havendo questões complicadas em torno disso, esses são apenas exemplos de como sexo nunca foi interpretado apenas como uma realidade biológica sem influências sociais e culturais. Até mais da metade do século 18, a reprodução não havia sido compreendida como é atualmente, passando por diversas hipóteses e crenças (também enviesadas por gênero) que foram rompidas pela ciência.

A Grécia Antiga se destacou pelo modelo de sexo-único, que acreditava basicamente que o “sexo masculino” era mais desenvolvido enquanto o “sexo feminino” era uma versão inferior, invertida desse outro. E tal perspectiva moldou a forma como mulheres cis e a feminilidade eram tratades nesse período: numa posição de passividade, fraqueza, submissão, etc.

E então, no final do século 18, criou-se o modelo de dismorfismo sexual que temos até os dias atuais, que colocava dois sexos diferentes e distintos, nascidos para se complementarem, colocados em realidades “naturais” próprias e justificadas pela ciência, pela região, pela moral, e outras concepções construídas ao longo dos anos e das épocas. Expectativas de virilidade e de qualidades como racionalidade e inteligência surgiram para “os homens”, enquanto a maternidade e a reprodução eram o destino e o ideal para “as mulheres”.

As concepções atuais, embora ainda em disputas e com cargas do passado, elaboraram melhor sobre a extensão do sexo. Podemos separar o sexo em quatro fatores principais:

  • genéticos – cromossomos e genes,
  • gonadais (testículos, ovários, etc),
  • genitais (pênis, vulva, etc),
  • e hormonais – suas atividades e os efeitos esperados (que formam as chamadas características secundárias, como barba e tamanho dos seios).

Quando o assunto é “os sexos”, o imaginário coletivo costuma pensar a mesma coisa que é vista nos livros de biologia: dois corpos brancos, magros, padronizados. Nem focarei a questão nos corpos transicionados. Pergunta: quantos corpos negros, gordos, mais diferenciados são mostrados, ilustrados, tidos como referências? Não é por um acaso que esses corpos não aparecem, pois nossas concepções de sexo vêm de uma base eurocêntrica. A diversidade de corpos está atualmente promovendo essa nova disputa, que é questionar e reformular essa sistematização vigente do sexo, que dita que só existem dois sexos legítimos e naturais.

  • O gênero e os órgãos reprodutivos

Essas duas categorias absolutas de sexo que então predeterminam um gênero são colocadas a nós como realidades. E, sendo realidades, são inquestionáveis, são para a vida toda, são parte do que somos e jamais poderemos mudar. Tudo isso começa com uma simples genitália de ume bebê, ou do que é identificado num ultrassom.

Várias e várias vezes pessoas cis reafirmam seus gêneros com base na genitália (principalmente) (que, para elas, resume a totalidade de seus sexos). Isso é mais presente em homens. Mulheres podem incluir nisso seus ovários e útero. Pois bem, aí temos uma imensa brecha que demonstra a fragilidade do sistema binário de sexo-gênero, visto que essas partes corporais podem sofrer efeitos irreversíveis, como perda ou “inutilização”. Se um homem perder o pênis num acidente, ele deixará de ser homem? Quando a mulher já não menstrua e nem reproduz mais, ela deixa de ser mulher? Centralizar os gêneros nessas partes corporais, portanto, é inviável.

Quando o assunto não envolve pessoas cisdissidentes, e pessoas cis são questionadas sobre seus gêneros, incrivelmente, elas costumam se reafirmar com respostas subjetivas, mesmo que muitas se baseiem em estereótipos e papéis de gênero. Nesses momentos, ninguém se lembra da tal “realidade” do sexo. E ela também não é lembrada quando estamos falando de máquinas, inteligências artificiais, e personagens de obras fictícias. O robô Sophia foi reconhecido como uma cidadã, e é tratado o tempo todo como mulher, mesmo não tendo nada de orgânico dentro dele. Siri é tratada sempre com linguagem associada ao gênero mulher, apesar da mesma declarar por si própria que não é mulher e gênero não se aplica a ela. As Gems da franquia Steven Universo, embora utilizem como padrão a linguagem a/ela/-a e possuem formas geralmente associadas com o que se entende por feminino, são entendidas como mulheres, apesar de serem aliens sem sexo/gênero e mesmo podendo adotar qualquer forma e linguagem. Esses são exemplos de que gênero é (de)marcado também quando conveniente mesmo quando não há um sexo presente. Não é sobre sexo, ou apenas sobre sexo.

  • A simplificação do sexo

Os termos “sexo masculino” e “sexo feminino” já nem têm uma lógica, pois não faz sentido chamarmos coisas objetivas por coisas subjetivas. Os sexos estão ali, sendo o que são. O que os torna masculinos ou femininos? Como podemos chamar os sexos de ideias que mudam de tempos em tempos e de cultura em cultura? E como poderíamos ainda utilizar tais palavras enquanto as desvinculamos dos arquétipos de homem e mulher?

Tirando essas abstrações, mesmo corpos que se encaixam nos ideais dos “sexos típicos” (os perissexos) são muito variados entre si. O sexo não é um fator infalível que “denuncia o gênero” das pessoas sob toda e qualquer circunstância. Corpos marcados como “femininos” que são esguios e com seios pequenos podem bagunçar percepções sociais. Corpos marcados como “masculinos” que são gordos e desenvolvem seios rompem com a expectativa de um corpo de peito reto. Pode ser difícil assimilar essas variedades porque vivemos numa sociedade muito marcada por gênero através de roupas e comportamentos. Pode ser também que vivemos numa bolha onde corpos que se encaixam nos ideais cisnormativos são predominantes, o que torna a perspectiva mais enviesada. Porém, corpos são diversos, e portanto não se encaixam perfeitamente em duas categorias tão estritas com características que podem ser presumidas e que são esperadas.

Como também foi mencionado, existem quatro fatores principais que moldam o sexo das pessoas, e tais fatores, além de amplos, também oferecem combinações variadas entre si. Por isso temos tantas variações mesmo que das genitálias típicas, de tamanhos de seios, de distribuição e quantidade de pelos, enfim. E no meio dessa diversidade toda, saindo do que ainda é considerado comum, temos a intersexualidade, que logo será abordada.

Então o que sobrou até aqui são os usos dos termos “macho” e “fêmea”, pois parecem ser os únicos que faz algum sentido usar, ou que podem ser viáveis para se referir a tipos sexuais. Hm, bem, não exatamente. Esses termos perdem totalmente o sentido com corpos que fizeram procedimentos hormonais e/ou cirúrgicos, ainda mais corpos uma grande “passabilidade” como de “outro sexo”. Vou elaborar mais no próximo tópico.

  • Intersexualidade: sexo enquanto espectro

Com as concepções vigentes de sexo, vieram também as concepções de sexos normais e sexos anormais, defeituosos, de anomalias, de distúrbios. O que entendemos por intersexualidade não é uma novidade, e já esteve presente em outras culturas. Porém, a patologização da intersexualidade é um tanto recente. É um assunto tão apagado que quase ninguém aprende sobre ele, seja numa escola, seja trabalhando numa área da saúde. Muita gente pode até ter tido contato com o termo “hermafrodita”, mas o que se entende é “alguém com pênis e vagina”, ou “alguém com ambos os sexos” (que quase sempre se resume às genitálias típicas). E várias mentiras continuam sendo espalhadas, principalmente que pessoas intersexo são estéreis e frequentemente doentes.

A pauta intersexo está avançando, e está desmentindo décadas de falácias e invenções sobre intersexualidade. O que o movimento intersexo internacional esteve defendendo é a validação dos corpos intersexo, o que fez com que váries cientistas revisassem as concepções de sexo. E então chegamos a uma nova perspectiva que esteve ganhando cada vez mais força: sexo é um espectro. Nos deparamos então com inúmeras combinações de cromossomos, órgãos e atividades hormonais que revelaram o quanto o sexo é complexo, e que essa complexidade está presente em muito mais do que uma minoria estimada da população.

Cromossomos foram por muito tempo presumidos por meio das genitálias típicas. Considerando que a maioria das pessoas sequer conferiu seus cromossomos, é muito possível que haja mais pessoas com variância cromossômica do que se estima. A mesma coisa vale para órgãos internos e fenômenos como o mosaicismo.

Apesar disso tudo, a intersexualidade ainda não rompe com os ideais de “macho” e “fêmea”, que se entende como os sexos “típicos”. Há pessoas que até argumentam que a intersexualidade confirma a realidade dos sexos típicos. E há pessoas que, ainda apegadas aos ideais binários, defendem que o sexo é um “espectro de machos e fêmeas”, o que parece ser algo um pouco mais amplo que duas categorias estritas. Porém… se apegar ao “macho” e à “fêmea” ainda cai em contradições e paradigmas que precisam ser rompides. O sexo é fundamentado na reprodução, e com a reprodução vêm atrelados arquétipos sociais. O que seria um macho ou uma fêmea que não reproduz? A ideia de macho ainda faz sentido num corpo com pênis mas esguio e delicado? A ideia de fêmea ainda faz sentido num corpo com vulva mas grande e atlético? Vamos agora criar uma nova hierarquia, com machos típicos e atípicos e fêmeas típicas e atípicas? Entende aonde quero chegar? Se tirarmos a necessidade de reprodução e toda generificação, o que sobra para o macho e a fêmea? E vale relembrar que corpos transicionados já saem de qualquer lógica desses ideais também. Ampliar macho e fêmea é uma enorme perda de tempo. Precisamos tratar esses ideais como ultrapassados e inúteis. O macho já causou muito estrago. E o futuro não será da fêmea.

  • Mas e a reprodução? E as diferenças biológicas?

A reprodução ocorre tipicamente com a fusão de dois gametas, um espermatozoide e um óvulo, o que tradicionalmente necessita de dois sexos complementares. Ponto. Esses sexos complementares podem ser dois perissexos, um perissexo e um intersexo, ou dois intersexos (lembrando que nem toda pessoa perissexo é fértil e nem toda pessoa intersexo é infértil). Com o uso de tecnologia, essa reprodução pode ocorrer sem uma relação sexual, com a fertilização de um óvulo por inseminação artificial. Aliás, a tecnologia já está tendo resultados com processos que criam gametas a partir de outras células. Talvez, futuramente, teremos gestações completas in vitro ou mesmo partenogênese induzida na espécie homo sapiens.

Como foi dito antes, o sexo é fundamentado na reprodução da espécie, e assim foi por muito tempo pela religião e pela ciência. E os papeis reprodutivos posicionaram as pessoas em locais diferentes em várias sociedades. Como se o papel de determinado corpo na reprodução devesse determinar a ele valores, atribuições, comportamentos, e expectativas. Tudo isso são construções sociais. Até mesmo o modo como se lida com os possíveis papeis dos corpos na reprodução. É evidente a diferença entre um corpo que insemina e um corpo que gera. Porém, nem esses e nem aqueles que não possuem nenhuma capacidade ou mesmo vontade de reproduzir devem ser reduzidos a isso. Pessoas são muito mais que um papel reprodutivo.

A espécie continuará reproduzindo como sempre fez, se for essa a grande preocupação. Mais importante que isso é tornar a reprodução um processo absolutamente ético, sem pressões sociais, ou idealizações, ou expectativas, que parta de decisões tomadas individualmente (por quem que vai gerar), ou, se forem coletivamente (por quem vai gerar e ume parceire, um grupo, ou uma comunidade), que a pessoa que for gerar tenha o controle total de seu corpo e a plena consciência de concordar e vivenciar o processo. E torcemos para a evolução dos processos in vitro, para que assim os corpos também possam escolher não vivenciar toda uma gestação.

A ideia comum de reprodução acompanha várias outras ideias vinculadas a gênero. E tudo isso está sendo reapropriado e ressignificado por corpos dissidentes. A menstruação é até hoje considerada um “signo feminino”, parte do que faz mulher ser mulher. Agora, isso está sendo questionado. Não apenas da perspectiva de mulheres cis, que estão se colocando como muito mais que corpos que menstruam, e que estão evidenciando a vivência de mulheres que não menstruam. As perspectivas de corpos que não são cis ou perissexo estão conquistando espaço, mostrando que menstruação pode ser masculina para algumes homens trans, pode ser não-binária para algumas pessoas fora do binário, pode ser apenas uma característica tão relevante quanto tamanho e cor de olhos e cabelos para algumas pessoas de qualquer identidade de gênero, entre outras possibilidades. A mesma coisa está acontecendo com maternidade, paternidade, com os corpos que produzem esperma, enfim.

Por fim, entendo que o que foi trazido até aqui também pode entrar em conflito com os estudos neurológicos de sexo/gênero. Vários estudos indicam que existem diferenças estruturais significativas entre cérebros de corpos predominados por testosterona e corpos predominados por estrogênio. Outros indicam que determinados cérebros até predispõem preferências por certos signos sociais, como brinquedos e roupas. Espero que haja mais estudos sobre o cérebro, com metodologias variadas, feitos também por pessoas dissidentes. Não duvido que possa haver diferenças estruturais de nascença. De novo, as diferenças biológicas podem existir e existem. A questão maior é como lidamos com essas diferenças quando inseridas numa sociedade com hierarquias formadas em torno de um sistema de sexo-gênero. Novos estudos indicam que cérebros podem ter noções de sexo/gênero mais flexíveis. E, em todo caso, estudos “indicando” que cérebros podem predispor pessoas a se adequar a estereótipos de gênero já se mostram tendenciosos no momento em que estereótipos são puramente construções sociais. Como seria um cérebro “predisposto” a gostar de carrinhos ou de saias numa sociedade onde essas coisas nem existem? São nuances como essa que tais estudos deveriam começar a considerar melhor.

  • Fazendo nossos sexos

Afinal, a quem a desconstrução do “sexo biológico” realmente ameaça? A única ameaça real é somente contra aquelus que estão em posições de poder na hierarquia de sexo-gênero. Contudo, muitas pessoas, mesmo quando em posições menores na hierarquia, ainda terão resistência com isso, pois elas estão muito imersas numa realidade feita por falsas verdades afirmadas e reafirmadas constantemente. O sexo, mesmo hierárquico, também é feito no discurso. Está aí a importância de se apropriar e mudar o discurso.

Estamos presenciando o surgimento e a visibilização de paus de travesti, bigodes neutros, peitos transmásculos, úteros sem gênero, neovulvas transxeninas, e, com o avanço da tecnologia, poderemos ter uma diversidade de corpos físicos que ainda não é possível. Mas não apenas a tecnologia faz o sexo. Nossos discursos também fazem o sexo. Precisamos agora caminhar para retomar o sexo, e darmos aos nossos sexos nossos próprios sentidos em vez de deixar um sistema falido continuar fazendo isso por nós. É essa libertação que precisamos, que só teremos depois de jogar no lixo o binário de sexo/gênero e todos seus subprodutos (incluindo o macho e a fêmea).

É necessário descolonizar o sexo, para então personalizar o sexo, e então customizar o sexo como podemos e queremos.

Enfim, nossa concepção de sexo precisa ser revista e atualizada, pois continuar tratando-o como um binário estrito, uma realidade biológica inquestionável e atemporal, e algo apenas material existindo fora de influências sociais e culturais não é mais viável, além de ser anticientífico e limitante demais.

Links adicionais:

Ume Garote Altermative – O sexo biológico

Transfeminismo – Mulheres Trans Também São Mulheres Biológicas

Medium – Texto: Sexo não é cromossomos: a história de um século de ideias erradas sobre X e Y

AzMina – “Não é só o gênero que é socialmente construído, o sexo biológico também”

YouTube – Make Science BR | Sexo Biológico versus Identidade de Gênero (Parte 1)

YouTube – SciShow | Existem Mais Do Que Dois Sexos Humanos (em inglês, mas tem legendas automáticas em pt-br)

YouTube – Riley J. Dennis | Macho e fêmea são bináries, mas as pessoas não são (em inglês, mas tem legendas automáticas em pt-br)

YouTube – TED: A estranha história dos “cromossomos sexuais” | Molly Webster (em inglês, mas tem legendas em pt-br)

Visualizando Sexo como um Espectro (em inglês)

O corpo e a construção das desigualdades de gênero pela ciência (AC: cissexismo) (artigo científico para baixar)

Indeterminade

Atração por pessoas não-binárias: perspectivas e possibilidades para além do binário

Aviso de conteúdo: exorsexismo, cissexismo, colonialismo, capacitismo, exclusionismo baseado em reducionismo de gênero, exclusionismo contra microcomunidades, menções a corporalidades, contém ironias, links externos.

Recado: algumas das terminologias usadas ao longo do texto podem ser encontradas aqui e aqui, e podem facilitar o entendimento.

Este é um assunto inusitado, complexo, controverso, e extenso, sem uma única resposta simples, e uma discussão que ainda está sendo construída. Tenha tudo isso em mente ao ler esse texto.

Apesar disso, acredito que eu possa trazer aqui um conteúdo que ofereça mais reflexões e entendimentos do que mais dúvidas, respostas medíocres, ou perguntas sem qualquer resposta.

Atração por pessoas não-binárias existe? Ela é possível? As pessoas se atraem por uma identidade de gênero não-binária? As pessoas não se atraem apenas por “leituras sociais”? Toda orientação inclui pessoas não-binárias? Essa atração é totalmente diferente de atração por pessoas binárias? Todas essas questões e outros tópicos relacionados serão abordades aqui.

Como esse é um tema ainda novo, esse texto não vai trazer apenas informações prontas, mas também vai acabar tendo que desenvolver, quase como um “pioneirismo”. E, não, não sou da academia, e se querem tanto assim referências, sugiro que façam suas próprias pesquisas ou aguardem alguém fazê-las. Não precisamos de aval acadêmico para produzir, criar, desenvolver tópicos relacionados a qualquer grupo marginalizado. Aqui, trarei conhecimentos de comunidades, pensamentos e vivências de outras pessoas, e também minhas próprias vivências e perspectivas. Não estou inventando nada. E também terei algumas referências de estudos queer, pois, apesar de não haver (ainda) nada mais específico, estudos de sexualidade apontam sua complexidade, e isso será utilizado no conteúdo.

O texto é muito longo, já aviso. Então, leia no seu tempo. E leia até o fim. Valorize meus esforços com esse conteúdo. Aproveite.

  • Conceitos de atração e orientação

Por mais que se pesquise sobre “atração não-binária”, o conteúdo relacionado a isso é muito escasso e quase nunca desenvolve além de positividade (ex: “atração por n-b é válida!”) e afirmações breves (ex: “você pode se atrair apenas por não-bináries”). Nada disso é suficiente, devo admitir, para nos aprofundarmos no que é ou não é, ou o que pode ou não pode ser uma atração por pessoas não-binárias.

E antes de falarmos sobre atração por n-b, acho que deveríamos falar primeiramente sobre o que é atração.

Aqui não preciso me estender. Atração é basicamente todo interesse espontâneo ou vontade involuntária de ter alguma interação com alguém ou algo, e essa interação se desenvolve em algum tipo de relação. E relações podem ser sexuais, românticas, platônicas, alternativas, e etc. Orientações e outras identidades de atração são apenas descrições que pessoas necessitam por vários motivos. Não são e nem precisam ser descrições tão literais e restritas. Até porque, e isso é consenso de várias comunidades politizadas e de estudos de diversidade, palavras nunca serão suficientes para explicar todas as complexidades e subjetividades das pessoas. Atração é algo muito pessoal. Atrações são o que são.

Sobre orientações, um conceito utilizado até hoje é se baseando em “atração por gênero”. Isso é suficiente? Não. Mas essa descrição é o que funciona para o momento atual. Um conceito mais amplo de orientação é “as condições para que ocorra atração”. Isso é até melhor, pois inclui orientações que não são baseadas em gênero, que é o caso de orientações a-espectrais num geral.

  • Uma explicação conflituosa: “leitura social” x reducionismo de gênero

As atrações por pessoas não-binárias são discussões um tanto recentes ainda. Porém, mesmo assim, já existem respostas “prontas” sendo defendidas por aí. E vou falar da “principal”, a que mais vejo na Internet.

Tem gente que afirma que o mundo inteiro se atrai por uma “leitura social” (ou seja, se a pessoa é lida como homem ou como mulher), e isso nem é novidade: isso é literalmente o senso comum de qualquer sociedade colonizada, que tenha apenas como referências de gênero homens e mulheres, e que são distinguíveis seguindo lógicas cisnormativas (no corpo, na aparência, nos comportamentos, etc).

Aliás, gostaria de deixar muito bem registrado aqui o quanto essa premissa é tão errada, nociva, problemática, um imenso desserviço a qualquer luta contra as hegemonias de gênero e atração, e apenas mais uma forma de sustentá-las e se assimilar a uma sociedade binarista. E, como toda premissa assim, dá abertura a todo tipo de ataque e invalidação de microcomunidades e qualquer outra identidade que, para esses “novos” padrões – que são apenas os velhos padrões com outra embalagem, não serve aos interesses daquelus que querem apenas um pequeno espaço na normalidade.

Essa premissa de que todes somos apenas uma “leitura social” desconsidera totalmente as experiências de pessoas atraídas independentemente de gênero, de pessoas a-espectrais, de pessoas fluidas ou indefinidas, e de qualquer cultura não-ocidental com mais de dois gêneros. É principalmente colonialista, pois o binário de gênero e tudo que o acompanha (incluindo essa ideia) é uma invenção colonial. E também acredito que vale pontuar o quanto é uma perspectiva capacitista, partindo sempre de corpos capazes de ver. Não é por um acaso que as defesas dessa premissa quase sempre vêm com exemplos envolvendo gente “que vemos” na rua, na balada, no Instagram, enfim.

Só um adendo, isso também me fez refletir se “leitura social” é realmente uma terminologia adequada e precisa, pois leitura remete a algo que se vê, e além de pessoas cegas existirem, o gênero das pessoas não é apenas presumido por aparência, mas também por voz, toques, e até mesmo o modo como a pessoa escreve ou age num bate-papo. Enfim, voltando ao assunto…

Além disso, a ideia de que todes podem ser reduzides a uma leitura social joga toda luta contra a cisnorma no lixo, pois se pessoas podem ser reduzidas assim no campo afetivo, nada impede de ocorrer o mesmo em outros campos. Então pessoas serão privilegiadas ou oprimidas de acordo com a leitura – e aqui damos total razão ao que o feminismo radical prega. E, consequentemente, outras lutas perdem sentido. Se leitura é o que importa, o que fazer com “as falhas” como pessoas intersexo? Devemos agora dar razão ao transmedicalismo e desejar que toda pessoa trans faça uma transição física completa, tudo dentro da conformidade de gênero? Pessoas inconformes de gênero são as novas subversivas da ordem e pureza?

Resumindo: a premissa de atração pela presunção de um gênero (sendo pessoas presumidas sempre como ou homem ou mulher) é uma perspectiva colonialista (portanto, cissexista), capacitista, e monossexista (e alossexista). Isso que estou resumindo, pois há mais coisas que eu poderia citar.

  • Talvez atração por expressão? Atração por um gênero presumido é errada?

Contudo, apesar de todas as críticas feitas, acho que posso trazer uma nova interpretação e possível solução. Talvez as pessoas que afirmam e reafirmam essa premissa sejam na verdade atraídas por expressões de gênero. Isso é diferente sim de “leitura social”, pois “leituras” falham muito e são incapazes de “acertar” o sexo ou ao menos a designação de gênero das pessoas. Sexo é um espectro, corpos são diversos demais, nossas noções dos gêneros binários são muito enviesadas, e nossas ideias de expressão de gênero precisam ser mais ampliadas. Portanto, “leitura social” é um parâmetro nada confiável de tão furado.

Existem masculinidades e feminilidades, tanto partindo das referências sociais que temos quanto de ressignificações feitas por pessoas ou comunidades. Se isso atrai as pessoas, tudo bem. Não há problema. Existem orientações que descrevem atração por expressões, e se atrair por expressões masculinas e/ou femininas não muda o fato de que essas expressões estarão em pessoas tanto binárias quanto fora do binário, e tais atrações não invalidam suas identidades de gênero. Aliás, li uma postagem dizendo que se você é alguém que se atrai por pessoas “femininas”, sabendo que elas podem ser de qualquer identidade de gênero, você pode ser ume pan com essa preferência de expressão.

Entendo perfeitamente que a ideia de atração por identidades de gênero não-binárias pode parecer impossível exatamente por nossas maiores referências sociais serem as hegemônicas. Ainda somos criades com essas referências, as quais internalizamos e influenciam demais em nosso desenvolvimento. Mas quando questionamos essas referências, quando as desconstruímos, podemos encontrar novas possibilidades e perspectivas de gênero, consequentemente, também de atração, e de como orientações e identidades podem funcionar para nós.

Sim, muitas vezes a maioria das pessoas presume um gênero, e dentro das lógicas cisnormativas. A presunção de gênero pode ser o que orienta as atrações dessas pessoas. E… isso é problema delas. Presunção vem de expectativas. Expectativas são problema de quem as tem. As expectativas de alguém ser de tal gênero binário são tão relevantes quanto quaisquer outras expectativas que se faz, como afinidades, gostos, traços de personalidade, etc. Até expressão de gênero costuma ser presumida erroneamente, o que é mais fácil de acontecer quando conhecemos pessoas através de redes sociais. Mesma coisa com gênero.

Mas, bem, atração é atração. Não curto a ideia de dizer que existem atrações erradas. Existem, sim, atrações partindo de premissas problemáticas, como quando se presume determinada genitália porque a pessoa parece ser de tal gênero. Porém, atração continua sendo atração, ela é involuntária, mas ela não é também desculpa para discriminar pessoas que não corresponderam a certas expectativas. Se alguém não corresponde a expectativas de corpo e/ou expressão, o melhor a se fazer é dizer que não tem interesse. Pronto. Não precisa se justificar.

Ah, algo importante de se pontuar é que embora expressões sejam resumidas a masculinas, femininas, e andróginas/neutras, isso não significa também que pessoas n-b com essas expressões se consideram pessoas “essencialmente” assim e/ou alinhadas com essas qualidades. Novamente, ninguém tem obrigação de corresponder expectativas, e isso vale também para a leitura que se faz das expressões.

  • Entre como ocorre atração e como descrever atração

Com base na minha experiência e em tudo que já pesquisei, posso afirmar que atrações podem ocorrer, em termos gerais, das seguintes formas:

– atração imediata (geralmente chamada de atração primária).

– atração desenvolvida (geralmente chamada de secundária) após aproximação, interação ou convívio com uma pessoa que já é potencialmente atraente.

– atração desenvolvida após aproximação, interação ou convívio com uma pessoa que antes não era potencialmente atraente.

– atração por uma presunção de gênero, e que permanece mesmo após haver confirmação de estar errada.

– atração por parceire de longa data que permanece mesmo quando elu se revela de outra identidade de gênero.

Sim, estou “validando” atração por uma presunção de gênero, unicamente porque isso é uma realidade no contexto atual. Porém, isso não é um destino, não é inalterável, e não é inquestionável. Inclusive, acredito que precisamos trazer essas discussões para que pessoas possam se conhecer melhor, e também para evitar mais gente não-binária sendo alvo de reducionismos alheios.

A desconstrução pode fazer diferença para certas pessoas. Há pessoas que podem descobrir ter atração por pessoas n-b por autorreflexão, acesso à informação, e/ou experiências com pessoas n-b. Da mesma forma, a desconstrução pode não fazer diferença. Algumas pessoas não se importam também, e querem se manter numa perspectiva binarista de mundo.

E tudo bem também para pessoas que até então se atraíram apenas por gente que correspondia a um gênero binário presumido, e que, por um acaso, eram mesmo desse gênero. São circunstâncias possíveis. Para algumas pessoas, um grupo é mais acessível a elas, e tudo bem se esse grupo for unicamente pessoas cis/binárias. Isso não é a mesma coisa que gente que busca somente relações com pessoas de um gênero presumido específico, não se importando mesmo quando são não-binárias. Uma pessoa já me disse que acha que pessoas assim poderiam ainda adotar rótulos que incluam n-b. Não discordo, mas particularmente acho que essas pessoas deveriam apenas evitar relações com gente n-b. Inclusive, esse é o meu posicionamento com pessoas hétero, e falei sobre isso nesse texto aqui.

Mesmo que a atração seja por um gênero presumido, pessoas ainda deveriam refletir se não deveriam considerar relações com pessoas n-b como relevantes, e procurar uma maneira saudável de incluí-las, que pode ser adotando outra(s) identidade(s) (como bi, poli, etc) ou ressignificando dentro do possível as existentes (como no caso das orientações gay e lésbique). Depende de cada caso, não existe uma resposta universal.

A ressignificação de orientações mono, em especial gay e lésbique, pode até ser defendida por reducionistas de gênero, porém, ela pode fazer sentido para muita gente n-b. E acho que vale pontuar também o quanto várias pessoas aceitam as premissas do reducionismo de gênero porque são carentes de afeto, por suas opções de relacionamento serem escassas, então aceitam serem reduzidas a gêneros binários para ter alguma coisa, por mais mínima que seja.

Há pessoas que consideram a validação da atração por pessoas n-b importante mesmo quando a atração surgiu pela presunção binária. E sei disso porque já aconteceu comigo: um menino gay chegou em mim, mostrou interesse, falei que eu era não-binárie, e então ele se questionou se continuava “sendo gay”. Muito embora ele tenha se atraído por uma presunção, e eu também nem acho que faria sentido ele mudar sua identidade por causa de uma atração pontual, aquela situação foi relevante suficiente para ele questionar se a identidade gay podia descrever aquela experiência. Talvez aquilo o tenha feito considerar atração por n-b uma possibilidade maior, e/ou tenha mostrado uma nova possibilidade que até então nem havia sido considerada.

  • Explorando a atração por pessoas não-binárias

Li uma vez uma postagem dizendo que alguém afirmar não ter atração por pessoas não-binárias não tem fundamento, porque não existe qualquer padrão ou referências sobre o que é uma pessoa não-binária, que pessoas não-binárias podem ser literalmente de qualquer jeito assim como pessoas binárias, e que com certeza em algum momento da vida todo mundo se atraiu por uma pessoa n-b sem saber disso. Eu… não discordo disso.

Significa então que toda pessoa é atraída por pessoas n-b? Hm… vamos nos aprofundar nisso.

A afirmação que qualquer pessoa de qualquer identidade de gênero pode ser de qualquer forma faz todo sentido, e não há o que discordar aqui. O problema é quando isso é colocado como a realidade total de todas as pessoas, sem considerar qualquer contexto social, as dinâmicas, e como os sistemas opressivos operam. Bem, se todes são atraídes por qualquer identidade de gênero, então significa que enfim rompemos com o cissexismo? Rompemos também com parte do heterossexismo, já que héteros nem existem? Rompemos com o monossexismo, já que todo mundo é multi?

Não é assim que funcionam as coisas, ainda mais quando fenômenos como privilégio hétero e multimisia continuam existindo e beneficiando certas pessoas.

Com tudo que foi dito até aqui, lembrando também das situações que citei sobre como atração ocorre, não acho impossível existir situações em que alguém perde atração pela pessoa se dizer não-binária. É exatamente a mesma coisa que já acontece com gente com atração por bináries. Se é errado não se atrair e não querer relações com n-b, bom, então vamos agora acusar váries homens gays e mulheres hétero de misoginia por não quererem nada com mulheres, ou admitir que existe misandria da parte de váries mulheres lésbiques e homens héteros? Talvez o que não tenha de atraente na não-binaridade é a mesma coisa com pessoas que apenas se atraem e se relacionam com um gênero binário específico. O que podemos fazer? Vamos policiar a atração e relação alheias, e assim criar um novo regime opressivo em cima do heteronormativo?

No fim das contas, pessoas também podem buscar relações com apenas um grupo de gênero específico por quaisquer outras razões além de atração, principalmente por afinidades e facilidade de relação. E as dinâmicas com pessoas não-binárias tendem a ser muito diferentes de pessoas cis e binárias num geral, o que leva gente n-b muitas vezes a encontrar relações melhores com pessoas multi e/ou outras não-binárias.

Não acho que deveríamos focar em provar que pessoas podem ser entendidas como não-binárias sem nenhuma informação prévia e que a atração imediata por isso é o que realmente se configuraria numa atração por n-b real e possível. Caímos num paradoxo, pois a mesma coisa poderia ser afirmada de pessoas binárias. Acho que deveríamos ir por outras abordagens, e deixar cada ume se atrair e se relacionar com quem quiser e ponto final.

  • Termos de atração que incluem n-b, relações diamóricas

Afirmo com certeza que não é impossível ou sem sentido orientações que incluem ou podem incluir atração por n-b, como toren e trixen ou poli. Mesma coisa sobre pessoas que se dizem atraídas exclusivamente por gente n-b. Vindo de pessoas binárias, isso gera controvérsias. Mas vindo de outras pessoas n-b, essa possibilidade existe, pois elas podem não ter atração por gente binária por causa de opressão e experiências negativas. E, da mesma forma, também podem perder alguma atração prévia. Na prática, convenhamos, não é diferente de relações centradas entre grupos marginalizados (como as transcentradas, ou afrocentradas, enfim), e se homens aquileanes e mulheres sáfiques podem escolher se relacionar apenas com o mesmo gênero, a mesma opção deve existir para pessoas n-b também.

Porém, muitas pessoas admitem que atração exclusiva por gente n-b pode ser confusa ou pouco frequente, e por isso difícil de entender, pois ainda vivemos num mundo onde não existe ainda um número significativo de pessoas não-binárias evidentes, e ainda tem toda aquela questão que expliquei das referências sociais impostas. Mesmo assim, há pessoas afirmando que sentem atração exclusiva por pessoas n-b, e não há razões para não acreditar nisso.

E como alguém pode se atrair “desde sempre” por pessoas n-b apesar das referências? Não sei. Particularmente, imagino que talvez essas atrações poderiam se manifestar como interesse por androginia, inconformidades de gênero, corpos que poderiam ser considerados intersexo ou transicionados, corpos e aspectos improváveis de existir “naturalmente”, e/ou até mesmo seres humanoides fictícios. Isso até a pessoa se desenvolver e aprender que sexo não define gênero, que pessoas não-binárias existem, e que elas podem ter qualquer aparência e corpo. E digo tudo isso porque o que faria mais sentido para uma “atração não-binária” é criar suas referências por fora das referências binárias.

Identidades que descrevem atração não precisam ser tão restritas assim, nem tão literais. E nenhuma exige qualquer tipo de relação. Na teoria, pessoas podem ter relação com qualquer ume. Mas ter determinada identidade não implica que você deva se relacionar com tal pessoa ou grupo.

Por isso mesmo é válido adotar certas identidades pensando não apenas em atração como também em suas relações, querer expressar por meio desses termos que você tem relações com pessoas de tal identidade/grupo. Uma pessoa cetero, por exemplo, não precisa ser alguém que passou a vida toda tendo atração imediata unicamente por pessoas n-b, mas pode muito bem ser alguém cuja atração por pessoas n-b é a única relevante e que busca relações somente com essas pessoas. Aliás, pessoas já adotam orientações por outras razões além da descrição geral, podendo ser afinidade com uma comunidade (ex: alguns casos de pessoas [mono] [multi]), ou pela facilidade em explicar para as pessoas em geral (ex: uma pessoa que usa pan em vez de bi devido à interpretação binária do senso comum).

Acho muito admirável o trabalho que as comunidades virtuais na anglosfera tem feito há anos. Há registros de cunhagens de rótulos falando de atração por n-b já desde o início da década passada. Isso comprova o quanto essas comunidades estavam muito avançadas, trazendo perspectivas de inclusão e validação não-binária que estão até hoje sendo debatidas de uma forma tão rasa e infeliz (especialmente na lusosfera). E já faz anos que pessoas têm tocado em assuntos como pessoas hétero se atraindo por n-b, ou se todo mundo é realmente atraído por n-b, ou se ter uma atração pontual por pessoas n-b tem o mesmo peso que relações com elas.

Essas cunhagens são muito importantes para experiências de pessoas não-binárias, e de atrações e relações envolvendo pessoas não-binárias, ainda mais num mundo ainda regido por um sistema binário de gênero que não considera sequer identidades ou atrações e relações assim como reais, possíveis, ou legítimas.

Mesmo assim, entendo que haja pessoas na dúvida sobre a importância de evidenciar relações diamóricas, ainda mais quando o assunto são as dinâmicas de opressão e discriminação na sociedade. Atração por n-b é discriminada? Minha resposta é: sim. Com certeza não da mesma forma que relações entendidas como “homoafetivas” (num contexto binário típico, né). Também me questiono o quanto um homem cis hétero todo padrão declarando atração por uma pessoa com toda uma “passabilidade de mulher cis”, mesmo após essa pessoa se declarar não-binária, teria sua atração discriminada da mesma forma se a situação fosse com alguém de barba e peito reto. Porém, apagamento também é uma faceta da opressão. Considero essa discussão no mesmo patamar de pessoas trans binárias sem passabilidade sendo maldenominadas.

E, além disso tudo, por mais apagadas que sejam as relações diamóricas, pessoas não-binárias ainda estão sujeitas a relações abusivas com pessoas binárias que não consideram sua não-binaridade (olá, prazer, sobrevivente de uma relação assim falando aqui). Violências assim e em outros campos também causam danos, o que não deixa de ser parte do exorsexismo.

Por tudo isso que a validação de pessoas não-binárias é tão necessária, e isso inclui terminologias que descrevam atrações e relações específicas com e entre pessoas n-b.

E um breve adendo: em outras culturas não-ocidentais existem termos que descrevem relações entre homens e mulheres com pessoas de identidades de gênero restritas dessas culturas. Menciono isso apenas como um paralelo, para mostrar que termos que descrevem relações entre gêneros “diferentes”, num contexto fora do binário, são históricos e considerados relevantes por tais culturas.

  • “Todo mundo se atrai por n-b, toda orientação inclui n-b”

Então podemos afirmar com toda confiança de que todo mundo é potencialmente atraído por pessoas não-binárias? Minha resposta é: depende.

Tente imaginar ou compreender a seguinte situação: uma pessoa que passou a vida toda achando que só existiam dois gêneros, e se atraiu e se relacionou unicamente com pessoas que se apresentavam como um desses gêneros. Eu, uma pessoa de outra geração, de outro contexto, com toda informação que tenho, posso chegar nela e dizer que a atração dela não é por apenas esse gênero, e que ela na verdade se atrai sim por pessoas de um grupo o qual ela nem sabia que existia? Posso fazer isso? Podemos fazer isso? Como exigir de alguém se atrair pelo que elu desconhece?

Antes de ficarmos repetindo como mantra que todo mundo se atrai por n-b, deveríamos pensar nessa nuance e nas outras abordadas anteriormente.

E, sobre a questão de toda orientação incluir ou não n-b, proponho as seguintes perguntas:

– “Toda pessoa está interessada em incluir n-b em sua orientação?”

– “Toda pessoa n-b faz questão de ser incluída na orientação de todes?”

Como a resposta para ambas é não, então, não há sentido em jogar pessoas não-binárias para quem não as quer e para quem não querem, e isso apenas com o intuito de validá-las, sendo que outras formas melhores disso existem e foram apresentadas. Gente exorsexista nem deveria estar entrando nessa discussão toda.

Apesar de tudo que foi dito até agora, muita gente “convencida” pode ainda achar que atração por toda não-binaridade é o que faz mais sentido, ou atração apenas por espectros de gênero – que vão de masculino e feminino, tendo andrógino/neutro no meio. Então isso levanta umas perguntinhas, por exemplo:

– “Como é possível então se atrair exclusivamente por pessoas agênero?”

– “Como assim atração maior por xenogêneros?”

– “Como ter preferência por identidades distantes do binário, como aporagênero e maverique?”

Pra mim as respostas para perguntas assim são tão subjetivas quanto responder o por que nos atraímos por homens, mulheres, expressões masculinas, expressões femininas, e expressões andróginas/neutras. Nada disso precisa de justificativa para existir. Mas se vamos agora exigir explicações, que sejam então de todo mundo. Justo, né?

Da mesma forma que não me interessa tentar entender quem se atrai por tudo que mencionei, não me interessa também quem se atrai por novos arquétipos, ou novas projeções, ou grupos e/ou identidades em particular. Se alguém diz se atrair de tal forma por tal coisa, eu não tenho o que contrariar ou discordar, o que posso fazer é apenas acreditar, pois nem tenho motivo para desacreditar.

Talvez, para algumas pessoas, faça sentido se atrair por ausências de gênero, ou por gêneros que não podem ser explicados com concepções comuns e humanas, ou por todas as identidades definidas por não estar de qualquer forma dentro ou próximo do binário. Talvez o que exista de tão atraente em masculinidades e feminilidades também exista em androginidades/neutralidades, e também em nulidades, xeninidades, outerinidades, entre outras possíveis qualidades de gênero. Talvez seja a mesmíssima coisa com as qualidades que existem em outras culturas e só fazem sentido dentro des entendimentos e dinâmicas de gênero delas. Novas ideias estão sendo descobertas, ou criadas, ou (re)formuladas, e, a partir delas, possibilidades surgem ou mesmo ressurgem. É assim que entendo essa questão toda.

Eu adoraria que houvesse estudos sobre isso, pois gosto de estudos sobre diversidade. Mas se for para existir estudos sobre atração por identidades não-binárias, que haja também sobre atração pelos gêneros binários. A última coisa que precisamos é exotificação científica, assim como já foi praticada com homossexualidade e transexualidade.

Sinceramente? Nós não entendemos nada de nada ainda. O que entendemos até agora sobre essas questões de atração e gênero ainda estão em construção. E o que entendemos até o momento é muito enviesado: são muitas perspectivas normativas, tendenciosas, ocidentais, e que fazem mais sentido na atualidade. E as perspectivas de muitos corpos, em especial com deficiência e neurodivergentes, sequer estão tendo a consideração que merecem. Não temos todas as respostas. E, mesmo quando há uma resposta, ela pode mudar daqui a uns anos. Talvez jamais tenhamos todas as respostas. Então precisamos tanto assim ficar disputando por respostas definitivas e absolutas? Pra que, afinal? Por nós? Por nosso grupo, ou nossas bolhas? Pela sociedade? Pelo planeta todo? Precisamos pensar mais nisso.

Enfim, acho que posso concluir o texto assim: atração por pessoas não-binárias, por mais subjetiva que seja, por mais que seja uma discussão ainda sendo construída conforme as discussões não-binárias avançam, é tão real e possível quanto atração por pessoas binárias, pode ter vários significados e contextos, pode ou não estar inclusa em qualquer orientação, pode ou não ser relevante nas relações de alguém, abre uma gama de possibilidades que transcendem concepções binárias, e desafiam as concepções atuais que ainda temos de atração e orientação e identidades.

Precisamos parar com tantos esforços inúteis e danosos de tentar simplificar a diversidade. Afinal, isso apenas nos joga de volta às margens das normatividades. Se formos analisar bem, as normatividades são exatamente isso: simplificações. E o que podemos fazer até lá? Bom, continuar vivendo e aprendendo, nos relacionando com quem quisermos, adotando os rótulos que quisermos, nos politizar, e contribuir para mudanças radicais, para derrubar as hegemonias vigentes. E podemos começar isso apenas parando de reforçar tais hegemonias. Nunca faremos parte delas. E ainda bem.

Links adicionais:

Instagram – Qualidades de gênero

Instagram – Atrações

Valprehension – “Se você está afim de mim, então você não é hétero” (em inglês)

Todo Mundo Sente Atração Por Pessoas Não-Binárias (em inglês, tem legenda em pt-br)

Tumblr: uma postagem sobre discursos sobre atração não-binária (em inglês)

Tumblr: uma postagem sobre argumentos reducionistas de gênero (em inglês)

Medium – Passando como Transfem e Transmasc (Ao Mesmo Tempo) (em inglês)

Binarismos

Aviso de conteúdo: colonialismo, racismo, diadismo, cissexismo, menciona genitálias.

Os binarismos estão em todo lugar. Contaminam nossas mentes e perspectivas de mundo, limitam nossas possibilidades, nos passam inverdades disfarçadas de realidade e ordem natural das coisas.

Não falo apenas dos binarismos como homem e mulher, ou pênis e vulva, etc etc etc.

Fomos/Somos colonizades por essa ideia arcaica de Bem | Mal. Pessoas são ou boas ou más. Coisas são ou boas ou más. Tudo é Preto | Branco, Positivo | Negativo, Quente | Frio, Esquerda | Direita, Cima | Baixo.

Cria-se oposições onde não existem. Cria-se contrários, inversões, antônimos, etc etc etc. E essas criações, mesmo quando absurdas, mesmo quando é evidente que não são suficientes, ainda influem em nossas vidas, relações, formas de agir e pensar.

(não é como se não soubéssemos que existem gradientes de cores, relativismos, várias temperaturas, diversos pontos cardeais, enfim… mas a gente esquece diretooo)

Os binarismos se sustentam ao máximo que podem, traçando uma grande e longa narrativa de que explicam o mundo, que sempre existiram e sempre existirão.

E quando não conseguem mais se sustentar com absolutismo, formulam suas armadilhas bizarras – e tanta tanta gente cai nelas.

O binarismo afirma que entre 1 e 2 existe o 1,5. E o que é esse número além um intermediário entre dois números inteiros (ênfase na palavra “inteiros”)?

O binarismo afirma que entre masculine e feminine existe neutre. E o que é neutre além de uma confirmação e reafirmação de que existem dois polos?

O binarismo afirma que entre Sim e Não existe Talvez. E o que é o talvez além de uma falta de certeza que continua nos apontando para apenas duas respostas?

O binarismo se contorna para afirmar que nunca existiram apenas duas opções igual a uma cobra que se enrola e morde a própria causa. Nos engana com falsas terceiras opções que nada mais são do que versões/derivações inferiores das únicas opções que são pregadas.

O binarismo procria também quando se faz necessário. Antes haviam es normais e es desviantes, até que surgiram os termos hétero e homo, deixando tanta gente que não é nem um ou outro num limbo.

O binarismo protege sua integridade sempre que pode. Antes haviam os marcadores sexuais de sexo masculino e sexo feminino, e agora temos, uau, o sexo X/indefinido/não-especificado (imagina só o binarismo dizendo que outros sexos são definidos ou específicos, né?).

O binarismo se segura ao máximo na simplificação. Antes haviam apenas dois gêneros, e então, para facilitar a compreensão das pobres pessoas do mundo civilizado com o sistema de gênero perfeito, jogaram toda e qualquer identidade dos povos incivilizados como “terceiro gênero”.

O binarismo também tem o poder de afirmar algo e agir diferente na prática. Nos dão tantas opções de “raças” além de branca, como preta, parda, amarela, etc, e ainda assim, só uma delas detém poder estrutural, só uma delas é vista como universal, enquanto as outras são As Outras.

Precisamos nos atentar às artimanhas dos binarismos. Elas existem. Elas estão aí. Por um lado, elas demonstram a fragilidade e o medo deles. Por outro lado, reduzem/apagam/esmagam a complexidade, a diversidade, a amplitude, tudo que ameaça os poderes binaristas.

Os binarismos vão a todo tempo nos intimidar, persuadir, nos convencer, ou tentar nos convencer, nos encurralar, prender, usar falácias, ter discursos bonitinhos, dizer que nos representam. Não caiam nisso!

Que es conformades fiquem às sombras dos binarismos, fingindo que estão sendo bem representades. Nós, comprometides com a inconformidade, não aceitamos migalhas, restos, subprodutos, entrelinhas ou notas de rodapé!

Não basta apontar para outras opções, ainda mais quando dadas pelos binarismos. Não basta criar apenas terceiras opções, ainda mais quando nossas referências são os binarismos.

A mera existência de duas e somente duas opções precisa ser destruída. Binarismos não podem e nem deveriam existir.

Sejamos todes, antes de tudo, antibinarismos!