Aviso de conteúdo: sexualidade, referências sexuais, menções a fetiches, discriminação anti-fetichista, contém links externos.
Hoje o assunto é polêmico. Então, putinhes e puritanes, se preparem para uma jatada de rompimento de moralismos na cara.
Vocês sabem o que são fetiches? Bem, talvez saibam. Ou acham que sabem. Fetiches possuem uma visão muito negativa, e até hoje espalham por aí ideias equivocadas sobre isso, chamando muita coisa que sequer é fetiche de fetiche.
Pois bem, basicamente, fetiches são quando se atribui um valor sexual a partes corporais, objetos, situações e fantasias que, a princípio, não possuem nada de sexual. Aqui poderia citar então fetiche por pés, por roupas de couro, em transar numa floresta, ou em simular uma cena erótica.
Não faz sentido dizer ter fetiche por órgãos genitais, pois já são partes associadas com sexualidade. O mesmo pode ser dito sobre partes que nem são genitais, mas possuem valores sexuais atribuídos socialmente, como bunda e seios.
Dentro do que foi dito, pessoas em si não podem ser fetiche por terem determinadas características. Isso é algo que pesa muito para grupos marginalizados, pois essas atitudes refletem outras facetas de suas respectivas opressões. Não, mulheres não são fetiche, pessoas negras não são fetiche, pessoas trans não são fetiche, pessoas gordas não são fetiche, e por aí vai. Não são porque não podem ser. O que acontece com esses grupos pode ser chamado de objetificação ou hipersexualização (não sei se existem diferenças práticas entre esses termos).
“Ah, mas eu vi a pessoa dizendo que tinha fetiche por [insira grupo marginalizado]!”
Pois bem, essa pessoa não sabe do que está falando. Ela está apenas reproduzindo uma ideia equivocada e negativa que é espalhada em torno da palavra fetiche. E, aliás, fazer isso não apenas cai na objetificação ou hipersexualização, como também contribui com o ódio e o preconceito contra fetiches e fetichistas. Para facilitar, eu vou usar o termo “fetichização” pra falar dessa ação errônea de tornar alguém ou um grupo num fetiche.
Ninguém diz ter fetiche em pessoas cis ou brancas. Engraçado, né? Porque elas são mais que isso: são “preferências”, são exaltadas como objetivos de vida, são colocadas como padrão de beleza e desejo. Isso é bem mais problemático do que quando esses corpos são, de certo modo, sexualizados em propagandas, na mídia, enfim. Daí, entramos no tópico da compulsão sexual que passamos na sociedade, onde somos bombardeades frequentemente com imagens e mensagens sexuais, que só reforçam as narrativas de que sexo é fundamental e deve ser presente em nossas vidas. Isso é um grande problema, mas não algo que deve ser colocado na conta dos fetiches.
A única “fetichização” que conheço de um grupo privilegiado é aquela cometida por muitos homens cis gays com homens cis héteros. Não que isso afete esse grupo de alguma maneira. O mais problemático mesmo é que essa exaltação do hétero parte de premissas normativas, de que o homem que se relaciona com mulheres é “mais homem”, logo, mais atraente e sexualmente cobiçável. Às vezes isso até se estende para homens multissexuais pelo mesmo motivo. Às vezes, não – o que evidencia o monossexismo.
Isso foi apenas para exemplificar que grupos privilegiados ainda podem sair intactos de objetificação e hipersexualização, e essas atitudes ainda terem por base opressões que não os afetam.
“Ah, mas até que ponto é fetiche e não distúrbio ou transtorno?”
Hm, qual o limite do fetiche? Isso me lembra perguntas como “qual o limite da arte?”.
O limite é não ter limite, desde que exista dois grandes pilares fundamentais que sustentam essa porra: consentimento e prazer. Se todas as partes estão concordando e estão curtindo, é o que importa. E é pra isso que serve (ou deveria servir) o fetichismo. Explorar novas áreas da sexualidade. O que é sexualidade sem consentimento e prazer?
Sim, quando falo que tudo pode, é tudo mesmo. Incluindo aquelas coisas que muita gente acha nojenta ou problemática. Coisas que acho que não preciso citar. O que é feito entre quatro paredes e entre um conjunto (um casal, um trisal, um bacanal, etc) é problema dessas pessoas, e um grande espaço onde a imaginação se expande a favor delas, sem julgamentos ou moralismos. É um espaço onde a própria opressão pode ser subvertida e transformada num ato de prazer, ou onde aqueles desejos considerados errados pelas sociedades belas e recatas podem ser realizados dignamente.
E, só pra lubrificar as ideias aqui, o fetichismo não envolve parafilias com seres incapazes de consentir, como o trio pedo-necro-zoo. Além disso, e pra finalizar, se um desejo seu te faz algum mal e também causa mal aes outres, o fetichismo ou o meio fetichista não vão te ajudar. Busque ajuda psicológica.
“Ah, mas eu vi uma pessoa dizendo que gosta de ser objetificada/hipersexualizada.”
Bem, isso é uma questão controversa. Fiquei refletindo sobre isso por um bom tempo. Acabei, então, comparando essa situação com dois fetiches: exibicionismo e submissão. O exibicionismo consiste na pessoa se mostrar, tendo prazer apenas com isso, ou também tendo prazer em despertar desejos alheios. Não seria isso uma forma dessa pessoa estar sendo hipersexualizada? A submissão envolve jogos e fantasias, muitas vezes envolvendo a pessoa simular ser uma coisa que só existe para o prazer alheio. Isso não seria a pessoa estar consentindo em ser objetificada? Se ambos os fetiches estão errados, logo, alguém que diz gostar de ser objetificade/hipersexualizade está errade. Porém, se nesse mundo de imaginação tudo é permitido desde que haja consentimento e prazer mútuos, por que uma pessoa desejar isso deveria ser errado?
Caímos quase numa questão filosófica. Mas eu também não sei se deveria ser, pois não acho que temos o direito de medir por nossas réguas se o prazer da outra pessoa é problemático, isso quando o mesmo lhe faz bem e não está ferindo nem a ela nem ninguém.
“E pessoas do mesmo grupo marginalizado podem cometer essas coisas entre si?”
Sim, da mesma forma que pessoas marginalizadas podem reproduzir suas respectivas opressões. Acontece. E por isso precisamos espalhar informações e abrir diálogos, mesma coisa que fazemos com demais questões estruturais.
“E como sei que estou objetificando ou hipersexualizando alguém?”
Se uma pessoa ou um grupo te disserem que você está cometendo essas ações, no mínimo, você deve refletir sobre isso. Ninguém fica incomodade ou desconfortável sem motivo. E isso vale pra qualquer ume, incluindo ume parceire de longa data.
Caso não tenha ninguém para te dizer algo, pense nas seguintes questões:
– Estou reduzindo alguém a determinada(s) característica(s) visando apenas meu próprio prazer?
– Estou colocando meu prazer em primeiro lugar sem pensar na outra pessoa?
– Estou colocando expectativas sem fundamento naquele corpo apenas por ele ser o que é?
Se a resposta for sim pra qualquer uma dessas perguntas, sim, isso é uma fetichização, e você deve repensar sobre isso.
Se a resposta for não, e você demonstra uma admiração genuína por certos corpos marginalizados, isso não é um problema. Você pode amar corpos marginalizados sem cair em fetichização. Você pode apreciar a beleza de um corpo negro, trans, gordo, etc. Apenas não espere que pessoas desses grupos te correspondam, ou fique buscando afeto apenas desses grupos (isso vai parecer chasing).
“Relações centradas entre esses grupos não podem cair nessas coisas?”
Talvez. Depende do caso, depende da intenção.
Relações centradas são uma resposta a uma estrutura opressiva que limita ou mesmo anula as possibilidades afetivas de um grupo. Por isso o grupo reage ficando apenas entre si. Justo, não? Muita gente também, por causa de traumas e um longo histórico negativo, acabam preferindo o próprio grupo do que “arriscar” outras relações. É um direito delas.
Agora, antes de apostar nas relações centradas, se façam aquelas perguntinhas, em especial a pergunta sobre colocar expectativas. E, como já disse, pessoas de um grupo marginalizado podem reproduzir ações de objetificação e hipersexualização. Se for o caso, não é uma relação centrada, apenas reprodução de ações opressivas.
“Mas, afinal, o que fetichistas sofrem de discriminação?”
Historicamente, formas não-normativas de sexualidade foram perseguidas, tendo o aval das famigeradas instituições sociais que sempre sustentarem as estruturas opressivas: religião, ciência e lei (nessa ordem). Isso não se refere apenas à heterodissidência, mas também aos fetichismos (e outros comportamentos, como masturbação).
Essa marginalização acabou aproximando corpos dissidentes dos fetichismos. O meio fetichista nasceu entre pessoas gays, lésbicas, multissexuais, inconformes de gênero, trans, não-mono, etc. Tanto que, por isso, o segmento queer engloba também es fetichistas (sim, isso inclui as pessoas peri-cis-hétero, superem logo isso), muito embora existam movimentos fetichistas próprios; que acabam sendo primos de movimentos LGBTQIAPN+.
E, apesar disso, vocês acreditam que o sistema teve a pachorra de se apropriar dos fetichismos, transformando-os num “luxo” para homens cis hétero brancos? Se quando você pensa em fetiche te vem a imagem clássica de uma dominatrix toda padrão que está lá para servir a um homem, parabéns, sua ideia de fetiche foi cooptada e distorcida com sucesso.
Apesar dos avanços sociais, fetichismos seguem sendo tabus na sociedade num geral. Discursos de ódio são bem comuns, sempre os associando a crimes e transtornos e similares; frequentemente, isso acompanha também outras ações opressivas (capacitismo, heterossexismo, cissexismo, misoginia, etc). É comum pessoas esconderem seus fetiches por causa de julgamentos, moralismos, reações de escárnio, nojo, enfim. A discriminação chega a atingir relações familiares e amorosas, podendo acabar em divórcios. Consultórios clínicos ainda tratam fetiches dentro de visões arcaicas patologizantes, apesar de BDSM ter saído do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais em 2013. Recentemente foi lançado um manual sobre fetiches para profissionais da saúde, e deixarei uma versão traduzida no fim do texto.
Exatamente por tudo isso que existe o termo fetichemisia (cunhado por mim, mas na verdade é apenas uma adaptação de kinkphobia). Embora haja controvérsias sobre “fetichista” ser ou não uma identidade política, ainda é um descritor de um grupo, e de um grupo sujeito a opressões oriundas de normas sexuais. Aliás, existe uma grande conexão entre fetichemisia e heteronormatividade.
Fetichismo já tem uma imagem negativa, e a mídia também não coopera para melhorar isso. Temos o exemplo clássico daquele livro que tem um personagem fetichista mas muito problemático, e muita gente combinou críticas a sua personalidade com o fetichismo presente na história. Entendam de uma vez: pessoas podem ser abusivas, sendo fetichistas ou não. Isso está relacionado ao caráter, não à sexualidade. Esse tipo de generalização é desonesta e praticamente a mesma coisa que conservadories fazem com pessoas heterodissidentes.
Enfim, acredito que isso era tudo que eu podia falar do assunto, e falar sem tabus e visando elucidar um tema ainda obscuro e cercado de preconceitos.
Se estamos falando tanto de liberdade sexual, deveríamos incluir também os fetiches. Se não deveríamos ter vergonha de uma orientação sexual, o mesmo deveria valer para os fetiches. Precisamos de mais positividade aes fetichistas, e menos julgamentos e discriminações.
Saibam do que estão falando, cuidado para não caírem em objetificações e hipersexualizações, e curtam suas sexualidades de maneira saudável e explorando os horizontes que quiserem.
Créditos a Fernanda Fedatto pela tradução.
Nota: juro pra vocês, descobri hoje mesmo que hoje, por uma grande coincidência, é o Dia Internacional do BDSM! Parece até uma piada do Universo com minha cara haha. Enfim, bom saber que estou postando esse texto num dia tão propício!
–
Links adicionais:
Como o BDSM pode te ajudar em seu relacionamento
O que é parafilia e fetichismo?
O discurso dos perversos: praticantes de BDSM em busca de legitimação (aviso de conteúdo: discurso médico patologizante contra fetiches e heterodissidência)
O Lado Ruim do BDSM (aviso de conteúdo: abuso, misoginia)