O que podemos com a isogeneridade

Aviso de conteúdo: exorsexismo, conflitos intracomunidades cisdissidentes, links externos.

Começo dizendo que eu gostaria de poder trazer um conteúdo mais concreto sobre o assunto. É difícil escrever uma elaboração maior de um termo tão pouco usado e com conteúdos específicos tão escassos. Então, mesmo com relatos anedóticos e hipóteses ainda não muito averiguadas, espero poder trazer alguma base para que outras pessoas e entidades possam elaborar e construir algo em torno do termo isogênero, que possam explorar sua potência.

A definição geral de isogênero é curta, focada numa negação: uma pessoa que não é nem cis, nem trans. Essa já é uma definição ampla suficiente, mesmo que possa parecer muito abstrata para quem conhece apenas cis e trans, ou mesmo que possa parecer algo impossível na prática pois só podemos estar alinhades ou não com o gênero designado. O que isogênero traz consigo é a abertura para pensarmos em gênero em algo maior que cis e trans. Não é surpresa que tenha surgido de uma pessoa anônima com uma experiência envolvendo o gênero designado e um gênero não-binário. E, não por um acaso, também, um termo que já desafia uma dicotomia acaba sendo contribuinte para discussões de experiências não-binárias.

O termo trans, que começa como abreviação de transexual, surge de um contexto biomédico patologizante e cisnormativo. Movimentos se apropriaram e conseguiram positivar a ideia de transexual; embora a comunidade trans teve suas conquistas ainda na sombra da patologização biomédica, e, infelizmente, precisando jogar com as regras da mentalidade cisnormativa para se validar. O termo transgênero surge anos depois, se consolidando como um termo para todas as pessoas que não estão de acordo com o gênero designado. Apesar de todas as discussões feitas até então, as vivências e narrativas trans que ainda possuem maior alcance e reconhecimento são focadas em homens e mulheres (e gêneros similares ou adjacentes, como travestis). Uma das resistências de parte da comunidade não-binária tem sido contra discursos e ações que a não consideram como uma existência válida dentro da transgeneridade. Por isso mesmo que não acho exagero alegar que a não-binaridade já vem desde muito deslocada (contra sua vontade) do entendimento popular de trans (e, com isso, de gênero), dentro e fora da comunidade trans.

Essa relação complicada com a identidade trans continua até os dias atuais, apesar de alguns avanços pontuais, de muita gente da juventude atual n-b reivindicando trans, e de posicionamentos de entidades diversas em prol da inclusão não-binária no conceito de ser trans (talvez seja daí que venha definições como “não estar de acordo, mesmo que parcialmente, com o gênero designado”). Felizmente, comunidades de pessoas fora do binário se moveram independentemente na busca de preencher lacunas de termos e conceitos para explicar suas dissidências, e muita coisa útil e produtiva foi surgindo ao longo dos anos, sendo propulsionadas pelas facilidades tecnológicas da atualidade. Nunca foi tão fácil criar um termo e espalhá-lo para milhares de pessoas como é agora. E então temos isogênero como uma dessas criações do nosso contexto contemporâneo.

Embora podemos dizer que o termo isogênero é relativamente novo (de 2017), pessoas fora do binário que não se sentem, em algum grau, contempladas pelos termos cis e trans não são nenhuma novidade. Não apenas pelo conflito histórico de narrativas dentro da comunidade trans, mas, também, pela própria imensidão de experiências que a não-binaridade traz consigo e que pessoas fora do binário constroem em teoria e prática. A não-binaridade esteve desenvolvendo noves perspectivas e entendimentos sobre gênero, o que se expressa bem em conceitos usados para explicar experiências e nas inúmeras identidades de gênero cunhadas até hoje.

Foi a não-binaridade, com todo seu potencial, que permitiu a existência do termo isogênero. Enquanto há outras modalidades propostas, iso surge num contexto em que várias pessoas não-binárias estavam mostrando anseios por não se encontrarem nos termos cis e trans. Em teoria, a não-binaridade sempre trouxe possibilidades de gênero que não se encaixariam estritamente nas definições básicas de cis e trans.

Explorando mais isso, possíveis experiências que poderiam ser englobadas por isogênero incluem:

  • Pessoas muito próximas do gênero designado, como pessoas parcialmente desse gênero (como demi-homem e demimulher), que fluem para esse gênero ou dentro desse gênero (como homem-fluxo e mulher-fluxo), ou que possuem um gênero muito similar (como proxvir e juxera).
  • Pessoas que são do gênero designado e mais alguma coisa, como alguém bigênero homem/mulher.
  • Pessoas que são dos gêneros homem/mulher de uma maneira desviante, como as identidades melle e femil.
  • Pessoas com experiências pessoais que as alienaram do gênero designado e/ou do conceito normativo de gênero, como pode ocorrer com certas pessoas neurodivergentes e intersexo.
  • Pessoas sem gênero que rejeitam radicalmente concepções de gênero e ainda podem querer uma modalidade de gênero além de cis e trans para se descreverem.

Esses são exemplos dados e quase todos repetidos em conteúdos que oferecem definição geral e alguns exemplos. Como foi dito, são possibilidades que podem ser cobertas por isogênero, e não possibilidades que devem estar dentro do termo, que sempre serão descritas somente por iso. Isso vale para todos os exemplos.

Gosto de pegar o exemplo de bigênero homem/mulher para elaborar sobre as nuances. O que está sendo trazido pela discussão é como uma identidade não-binária pode ser contemplada por modalidades de gênero diferentes dependendo da experiência da pessoa e como tal identidade se construiu. Talvez, uma pessoa bigênero H/M que se diz trans ache que a parte que não está de acordo com o gênero designado pesa mais na totalidade de sua experiência não-binária. Talvez, uma pessoa bigênero H/M que se diz iso considere que a vivência de se identificar com o gênero designado e outro gênero a distancia da ideia ser cis e/ou trans. São apenas hipóteses; e, de novo, é o que tenho pra oferecer até então.

Uma observação que acho interessante fazer é como algumas experiências parece estar mais entre cis e trans do que fora desses termos. E, sim, alguém poderia achar mais sentido em se dizer cis e trans ao mesmo tempo. Mas, ao mesmo tempo, se alguém achar que ser cis e trans é contraditório, essa contradição pode ser resolvida com a negação desses termos.

Como se pode perceber pelos exemplos dados acima de possíveis experiências que isogênero pode contemplar, elas variam entre questões com a própria identidade de gênero e questões mais externas envolvendo pertencimento e ideologia. Considero que os exemplos dados são mais gerais, básicos, situações mais simples de se explicar. Por isso, agora, quero trazer outras duas situações mais profundas em que pessoas poderiam se encontrar no termo iso.

– Pessoas que passaram por uma ou mais fases de “destransição” de gênero podem acabar se alienando do próprio gênero designado e até da ideia de ser trans. Dependendo de como for o processo de transgredir e “retornar”, pode ser que alguém não consiga se dizer cis pela inadequação com o gênero mas também não consiga se dizer trans por ainda estar considerando o gênero “inicial” como um lugar de existência. Gosto de usar, aqui, a analogia do cruzamento do rio: nunca cruzamos o mesmo rio duas vezes. Então, mesmo quando atravessamos pro outro lado, e então voltamos ao lado que saímos, a percepção do rio e do caminho serão diferentes. Esse caso de destransição ocorreu com alguém que conheci em Colorides, e achei um caso interessante de ser trazido (mesmo que não tenhamos contato e nem sei como a pessoa se identifica agora).

– Pessoas com uma vivência de gênero “entre” ser cis e trans, que envolve uma inconformidade de gênero tamanha ao ponto da pessoa se desviar bastante das expectativas em cima de seu gênero designado, podem achar relevante um termo como iso caso considerem que a dualidade entre cis e trans as deslocam desses dois locais. Pessoas com essa experiência também podem ser descritas pelo termo evênique. Além da expressão nas vestimentas e nos comportamentos, o sentimento pode ser maior em pessoas que recorrem a mudanças físicas, incluindo com hormônios, e outras mudanças sociais, como uso de um novo nome e/ou tratamento pessoal não associado ao gênero designado. Não conheço pessoalmente nenhum caso assim, mas já me deparei com pessoas (que se dizem) cis mostrando desejo por efeitos hormonais e ao menos uma pessoa cis que mostrava desejo por transgenitalização sem alterar mais nada no corpo.

Outras situações mais complexas, acredito eu, poderiam envolver intersecções como raça e cultura, neurodivergência (incluindo experiências com multiplicidade), intersexualidade e não identificação com humanidade (algo como “disforia de espécie”). Contudo, não tenho a base empírica e nem acesso a certas vivências para elaborar como se relacionariam com a isogeneridade.

Pode existir uma preocupação sobre iso fazer algum tipo de antagonismo com o termo trans. Não acho que o termo em si traga uma ideia antagônica. O antagonismo só aparece para quem quiser muito reduzir experiências de gênero à dicotomia cis-trans. Ou, também, quiser interpretar iso como mais uma invenção de jovens anglófones que querem “dividir ainda mais” a comunidade com rótulos “prescritivistas” e “desnecessariamente específicos”. Acho que o termo traz, entre outras coisas, uma boa crítica e provocação sobre o quanto trans é suficiente; o quanto a transgeneridade (como é conceituada atualmente) consegue realizar seu objetivo (aparente) de ser a não-cisgeneridade e um lugar de pertencimento a todo corpo fora da cisgeneridade.

Considerando o quanto movimentos trans ainda são tomados por pessoas trans binárias que não engajam com e sequer apoiam pautas não-binárias, o quanto transmedicalismo ainda se articula entre gerações antigas e novas ou se mantém nas referências de muitas pessoas para positivar e validar experiências não-cis, o quanto tantas narrativas trans e similares não superam os binarismos que permanecem fundamentando-as (homem/mulher, masculino/feminino), não deveria ser surpresa ou inimaginável como tantas pessoas excluídas de tais movimentos, do transmedicalismo e desses binarismos vão se alienar do ser trans enquanto identidade e reivindicação. E, consequentemente, buscar outras formas de se afirmar, pois corpos dissidentes urgem por materialidade, e a linguagem cria tal materialidade. Sem palavra para nos descrever, como iremos nos manifestar?

Agora, trazendo minha experiência pessoal como parte desse texto. Desde que me senti não-binárie, tive em mente que o rótulo trans me pertencia, pois vim de um contexto em que ser n-b era ser trans e que trans era minha única opção de modalidade além de cis. Apenas depois tive contato com isogênero, aceitei bem a ideia de outras modalidades, mas, mesmo assim, preferi não tomar aquilo como uma opção para mim, pois realmente me parecia algo distante de mim. Me firmei na identidade trans. Anos se passaram, e, em meio a isso, me ocorreram e presenciei muitos conflitos com transmedicalistas, pessoas trans binárias e travestis sendo reacionárias com pautas e construções não-binárias, disputas de narrativas entre pessoas trans não-binárias reproduzindo algum nível de reducionismo de gênero, e constantes imposições do termo trans em cima de qualquer n-b. Tudo isso me cansou.

E outras coisas que se somaram, que são importantes para mim, são: a) o fato de que levei anos vivendo como cis, e, por não ter tido tamanha vivência com a cisdissidência, me senti mais coadjuvante do que protagonista da causa trans; b) minha autopercepção enquanto sendo de um gênero que está para além de masculino e feminino (e neutro), enquanto a maioria das discussões trans não escapam desse reducionismo binário (e continua sendo binário pelo modo como neutro é um subproduto desses polos); e c) uma análise sobre o quanto políticas trans estiverem realmente contemplando a não-binaridade, na qual conclui que trans só representa parte dela, e outros termos devem existir para o restante

Em uma pesquisa pessoal e informal, colhi relatos de pessoas relatando experiências de não ser nem cis e nem trans que se encontram com tudo que foi descrito como possíveis experiências iso. Pessoas com uma experiência envolvendo gênero designado, ou sem gênero não querendo outros termos, ou que se afastaram de trans por exorsexismo. Ao menos uma pessoa declarou que usa trans por conformidade, e que, se tivesse conhecido iso anos atrás, teria adotado. Algumas pessoas afirmam não apreciar o termo trans devido a sua origem patologizante. Esses relatos se conectam com outros avulsos na anglosfera, tanto de pessoas iso quanto de pessoas não-cis/trans. E me lembro de, anos atrás, ter encontrado uma pessoa que se dizia uma mulher não-binária, que, na concepção dela, era “uma mulher nem cis, nem trans”. Para mim, tudo isso comprova a utilidade que um termo como isogênero pode ter.

Entendo qualquer ume que quiser argumentar que o termo isogênero não é tão necessário se todo corpo não-cis apenas aceitasse a transgeneridade como sinônima da cisdissidência. Agora, o que a comunidade trans como um todo esteve tentando fazer para concretizar esse ideal? Reparem nas figuras públicas de alcance, em como temas trans são abordados em mídias populares e nichadas, nas políticas criadas em torno da população trans. Ainda há quem diga que a não-binaridade “sempre esteve inclusa”, que a própria faixa branca da bandeira trans oficial é a prova disso. Em teoria, parece que sim. E na prática? A história, o percurso da comunidade trans e a experiência des n-b respondem bem essa pergunta.

Pessoas não-binárias que querem reivindicar seu devido lugar na transgeneridade possuem todo direito a isso. Um termo que fala de transgressão do gênero designado tem em seu fundamento a abertura inegável para várias pessoas fora do binário – lembrando que ninguém é designade não-binárie. Mas, por todas as razões explicadas, existe a necessidade de mais termos, e essa necessidade precisa parar de ser ignorada e desmerecida.

Outras modalidades além de cis, trans e iso podem ser discutidas e elaboradas também. Por ora, quero focar em iso mesmo; o que pode ser, no fim das contas, uma abertura para mais outras modalidades.

Acredito que a isogeneridade pode oferecer muitas contribuições a políticas focadas na população cisdissidente, mesmo que venha a ser adicionada como um anexo de trans (transgênero/transexual), exatamente por sua premissa e as possíveis experiências que pode englobar ampliarem a compreensão de gênero e da cisdissidência, em especial da não-binaridade. Isso pode ajudar a entender melhor as demandas de partes menos representadas da comunidade (como pessoas com identidades fora de masculino/neutro/feminino), investir em pesquisas e tratamentos médicos que não foquem apenas em transições associadas com masculinidade e feminilidade, melhorar as abordagens interdisciplinares sobre cisdissidentes, entre outras coisas.

A isogeneridade já existe enquanto um conceito palpável e um local de acolhimento e reafirmação para pessoas com vivências de gênero que, por quaisquer motivos, as alienam de cis e trans. O que falta, até o momento da publicação desse texto, é um movimento de pessoas que reivindiquem o termo, que possa trazê-lo mais para prática, menos para um campo individual invisibilizado e desarticulado. Por isso, incentivo que a isogeneridade tenha uma chance, em especial em movimentos não-binários.

Referências adicionais:

Isogênero | Wiki Identidades

Isogender | LGBTQIA+ Wiki

Not Cis. Not Trans. Genderqueer. | Good Men Project

I am not cis. I am not trans, either. | RL (Medium)

Not cis or trans? | r/NonBinary (Reddit)

I know I’m not cis. But am I trans? | r/NonBinaryTalk (Reddit)

Sobre ser demigênero (demimoça) e não encontrar acomodação no termo isogênero | Kitgay (write.as)

Publicado por Oltiel

Um pouco sobre mim: aporagênero (-/éli/e), polissexual, não-monogâmique, queer, militante LGBTQIAPN+, socialista, e mais umas coisinhas.

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