Existem pessoas trans binárias?

Aviso de conteúdo: cissexismo, exorsexismo, menções a genitálias e partes corporais sexualizadas.

Essa é uma discussão que vi sendo trazida algumas vezes pela Internet. De início, achei intrigante, que poderia ter uma premissa interessante. O problema é que essa discussão começa bem e termina sem ter para onde ir. Não acho que seja uma discussão inútil, apenas que poderia ser mais bem elaborada e ter algum objetivo mais concreto.

Todo mundo que a trouxe, até onde pude perceber, eram pessoas com acesso à academia ou que tiveram acesso às ideias oriundas da academia. Isso fica evidente pela maneira como falam e como tratam de nuances mais complexas que atravessam tópicos de gênero. Além disso, percebo que são pessoas que, exatamente pelos acessos que tiveram, entendem suas experiências de gênero como localizadas mais por fora da binaridade estrita (mesmo que se declarem homem/mulher ou travesti). Aponto isso porque compreendo que a discussão é trazida partindo de pessoas que questionam mesmo o binário de gênero; logo, faz sentido para elas que a transgeneridade delas “não seja binária”. Porém, isso não vai funcionar com todo mundo. Precisamos ter esse cuidado de não querermos tornar nossas experiências individuais em “universalidades”.

O raciocínio por trás da afirmação de que “não há pessoas trans binárias” é um tanto simples. É o seguinte: nosso sistema colonial impõe um binário de sexo-gênero que funciona numa lógica rígida de complementos entre dois sexos e dois gêneros. Reparem que são dois binários que formam outro binário. A lógica é que só existem dois sexos e que os mesmos devem corresponder a dois gêneros. Sendo assim, quem se alinha com esse binário de sexo-gênero são as pessoas cis e, portanto, elas são as “verdadeiras binárias”. Quem não se alinha, já transgride esse binário; logo, “não é binárie”.

Muito bem. Partindo dessa premissa, explorando esse outro significado de binaridade que funciona para esse contexto, faz sentido afirmar que nenhum corpo que alinha sexo e gênero é um corpo binário. Acho que talvez o adjetivo “binarizade” faria um pouco mais de sentido. Contudo, como acredito que tenha ficado nítido para algumes, é uma discussão muito mais filosófica que outra coisa. Inclusive, quem traz essa discussão sempre deixa alguns pontos passarem. Falarei sobre eles depois.

O que acho interessante nessa elaboração é como ela explora a polissemia das palavras. Aqui, temos outro sentido de “não-binárie”, que é a não-binaridade de corpos que não possuem sexo e gênero correspondentes. Ademais, sempre são trazidos exemplos de corpos com peitos e pênis e com peito reto e vulva como argumentos para reforçar que esses corpos não são iguais aos corpos cis, e que jamais serão aceitos tanto quanto os cis.

Como eu confio nas boas intenções de todes que presenciei trazendo essa discussão, não vou fazer acusações diretas de desonestidade. E acho louvável a iniciativa de tentar democratizar as discussões que ficam mais nesse nicho elitista da academia, pois a academia ainda serve bem para pesquisas e construção de conhecimentos. Se eu não soubesse de onde está vindo essa discussão sobre como pessoas trans “não podem ser binárias”, observando essas explicações, meu julgamento inicial (e isso vem de minha experiência nesses anos de ativismo) seria que isso está vindo de dois possíveis grupos:

– um grupo de gente trans binária ressentida com a não-binaridade querendo distorcer o sentido do termo e assim negar suas dinâmicas de poder com pessoas não-binárias.

– um grupo de gente trans mais acadêmica que gosta de complicar discussões de gênero para alimentar um ego academicista e parecer mais erudita do que realmente é.

Reconheço que, mesmo que com más intenções, pessoas trans que se declaram como homens e mulheres de forma total e integral não teriam qualquer vantagem em negar seus gêneros. Mas, se tal discussão viesse de gente desonesta, ainda acho possível que poderia haver uma tentativa, por mais que fosse cheia de furos lógicos, de se colocarem como “no mesmo nível” que todas as pessoas fora do binário – provavelmente até alegando que não existe relações de poder entre “bináries” e quem não é binárie.

Bem… agora vai soar pessoal o que vou falar: é muito conveniente alguém ficar falando por aí que é um “corpo não-binário do sistema de sexo-gênero” enquanto continua atravessando a sociedade se declarando apenas homem/mulher, ainda mais adotando para si o máximo de signos sociais estabelecidos para seu gênero e se aproveitando de uma possível passabilidade. Em outras palavras: é fácil ser filosoficamente não-binárie e se assimilar tranquilamente aos gêneros binários. E esse é o primeiro ponto que me incomoda nessa discussão, que acaba sendo mais ideias jogadas do que construções que se materializam na nossa realidade.

Se a discussão propusesse um questionamento da binaridade reivindicada ainda na transgeneridade, ainda mais se colocasse pessoas trans que são homem/mulher de forma total e integral para refletirem onde se localizam na binaridade de gênero, seria algo interessante. Porém, o modo como tal discussão é conduzida não leva para isso (ao menos não de forma nítida), apenas se sustenta em reafirmações do óbvio: que mulheres trans e homens trans não estão no mesmo patamar que mulheres cis e homens cis. Evidente que não estão, e não precisa de pesquisa de TCC para provar isso. A única coisa que faz esses grupos convergirem é o binário de gênero. Repito: de gênero. O simples fato de ambos os grupos se identificarem apenas com os dois gêneros impostos no mundo inteiro como os únicos possíveis de existir. E essa realidade coloca esses gêneros como grupos hegemônicos por si só. Gente marginalizada pode ainda pertencer a grupos hegemônicos. E pertencer a grupos hegemônicos ainda pode conferir benefícios. Isso é um fato que ainda precisamos pontuar mesmo dentro dos ativismos (e é bem chato isso).

Esse incômodo repentino com o termo “trans binárie” me parece muito infundado. Não é como se fosse difícil de entender que quando se fala em pessoas trans binárias estamos falando de pessoas trans que se identificam com os gêneros binários. Afinal, do que mais poderíamos chamar? Se há um incômodo genuíno com o próprio termo “binárie”, o que sugerem como opção alternativa? Porque, bem, precisamos de um termo! Falar apenas “pessoas trans” quando o assunto exige pontuar demandas e características específicas não funciona. Ficar citando sempre mulheres trans e homens trans (e possivelmente travestis, dependendo do contexto) por nomes deixa o discurso mais longo do que o necessário. Propostas? Nunca são feitas.

Vamos retomar a polissemia. O termo “trans binárie” está sendo usado para descrever um grupo específico dentro da transgeneridade. Temos aí movimentos históricos e firmes até os dias atuais de pessoas trans se reivindicando como dos gêneros binários e, em casos como no Brasil, de gêneros “parecidos” – muitas travestis se localizam na mulheridade de forma exclusiva ou central/primária. Se colocarmos o termo para questionamento, consequentemente temos que estender isso para o próprio termo “não-binárie”. Afinal, se nem temos mais bináries, como ficam aquelus que não são bináries? Com tudo que foi construído até aqui, como que esses questionamentos arbitrários vão auxiliar em qualquer coisa, ainda mais em nível de políticas públicas?

Sobre a polissemia, de novo, tem aqueles pontos que passam despercebidos por quem traz essa discussão:

– considerando que a dualidade de sexo é falsa também, pois o sexo é um espectro, por que pessoas intersexo não são definidas como fundamentalmente não-binárias? Não tem como alinhar dois sexos com dois gêneros quando nem dois sexos existem e quando seu próprio sexo não se encaixa nas duas categorias impostas.

– trazendo mais uma polissemia, as imposições de gênero não são apenas biológicas, como também são sociais. Pessoas cis que não performam seus gêneros dentro do esperado, ainda mais quando nem são presumidas como de seus gêneros, poderiam ser chamadas de não-binárias no aspecto da expressão – já que expressões também são padronizadas dentro de um binário.

Percebam que qualquer pessoa que não seja perissexo-cis e conformista de gênero pode ser chamada de não-binária quando algum sentido e contexto específicos forem propostos? E qual seria o problema disso? O problema é que já temos termos para descrever essas pessoas. Não é por que polissemia existe que ela seja necessária para toda palavra. Pessoas intersexo não precisam ser chamadas de não-binárias apenas por isso e já possuem demandas e pautas sob a identidade intersexo. Pessoas inconformistas de gênero podem ser cis ou cisdissidentes binárias e chamá-las de não-binárias pode causar confusões desnecessárias sobre temas de gênero e não-binaridade.

Com tudo isso dito até aqui, chego à conclusão que ficar divagando se pessoas trans podem ou não ser binárias é uma discussão que só caminha em círculos retóricos sem qualquer impacto nas dinâmicas sociais, que continuam existindo mesmo que fiquemos afirmando que “nenhuma pessoa trans é binária”. Exorsexismo continua existindo. Pessoas trans binárias podem acessar benefícios que pessoas fora do binário em geral não acessam.

Pessoas trans binárias podem:

– se validar em cima da teoria pseudocientífica do transmedicalismo, que reforça o binário de gênero como um fenômeno biológico e congênito;

– retificar seus documentos sem empecilhos jurídicos para as opções binárias de sexo/gênero e quando querem nomes associados aos seus gêneros, e de bônus não precisar se preocupar com o acesso a direitos e instituições que envolvam seus marcadores, como casamento e a receita federal;

– acessar recursos de saúde trans que estão preparados para atender pessoas na expectativa de que almejam uma transição de gênero “completa”, que as tornarão passáveis ou o mais próximas do padrão cisnormativo;

– reafirmar seus gêneros com todos os signos sociais feitos para homens e mulheres, como estereótipos, aparência, roupas, corte de cabelo, tom de voz, etc;

– acessar espaços ou ter legitimidade para reivindicar um lugar em espaços que sempre foram separados baseados no binário de gênero, como banheiros e times esportivos;

– adotar exclusivamente um tratamento gramatical associado a seus gêneros em idiomas com dois gêneros gramaticais e/ou com gêneros gramaticais baseados em marcadores sociais binarizados;

– se articular por inclusão social e políticas públicas visando apenas se assimilar às estruturas moldadas para corpos cis;

– adentrar em espaços de socialização sem precisar ficar justificando o que são e ainda sendo presumidas corretamente de seus gêneros;

– e defender suas existências sem nunca questionar radicalmente o binário de gênero enquanto estrutura colonial e que nunca fez parte de todas as sociedades da humanidade.

Esses pontos trazem dinâmicas de poder que existirão ali entre pessoas trans binárias e pessoas fora do binário independentemente das intenções envolvidas. Indo mais além: pessoas trans binárias e similares podem se articular declaradamente contra pessoas do fora do binário. Atualmente, transmedicalistas se reúnem em grupos de ódio para perseguir gente fora do binário como parte de sua agenda de se assimilar à sociedade cisnormativa. Não por um acaso são grupos que se humilham por qualquer mínimo de aceitação forçada e reproduzem outras opressões para se tornarem mais palatáveis (como capacitismo, gordemisia, enfim). Pessoas trans binárias e similares, quando adquirem algum poder institucional em cargos políticos e fazendo parte de grandes organizações ativistas, podem exercer poder sobre pessoas fora do binário, excluindo-as de discursos, propostas, convocações, eventos, e etc.

Ocasionalmente, quando ocorre algum caso de exposição e perseguição de pessoas não-binárias de expressão inconforme, como uma pessoa de barba que usa maquiagem e vestido, pessoas trans binárias e similares se juntam para colocar para debate a validade das expressões de pessoas não-binárias e se elas devem fazer parte de quaisquer políticas voltadas à população trans. Frequentemente, pessoas trans binárias e similares ficam justificando sua intolerância sobre a não-binaridade em cima de fantasmas e pânicos morais muito parecidos com aqueles propagados por cissexistas, como o estereótipo de gente branca e jovem de classe média que diz ser n-b “por moda” ou homens cis que se declaram n-b apenas para “invadir espaços”. Enquanto estigmas e exclusões são jogadas em cima de pessoas fora do binário, essas pessoas trans binárias e similares seguem sem sofrer consequência nenhuma por suas ações.

E vale lembrar que até então nem temos dados concretos sobre a saúde mental de pessoas não-binárias. Mas só com essas situações mencionadas posso afirmar que, além de cissexistas em geral, pessoas trans binárias e similares estão cooperando para a piora da saúde mental de gente n-b. Sem querer recorrer ao punitivismo penal, mas duvido muito que formulações sobre punir criminalmente transmisia estão considerando ações exorsexistas, de modo que é quase impossível que pessoas trans binárias serão alguma vez indiciadas por discursos de ódio contra gente n-b.

Aqui no Brasil, temos um movimento forte de pessoas transfemininas, falando em mulheres trans e travestis. Constantemente, esses grupos excluem pessoas não-binárias de tudo sempre que podem. Mulheres trans fazem isso enquanto pessoas binárias, nem precisam se justificar. Travestis podem utilizar da questão cultural e geracional para se validarem, alegando que existem antes do conceito de não-binárie e que ser não-binárie é uma importação gringa. Até onde sei, em outros locais onde movimentos de homens trans são mais desenvolvidos, vários desses homens, ainda mais quando são passáveis e brancos e com poder aquisitivo, ganham algum aval como autoridades em questões de gênero e usam suas influências para invalidar e desmoralizar dissidentes de gênero que não estejam dentro de suas narrativas, como pessoas n-b em geral.

Um comentário breve sobre as pessoas transfem: há situações em que mulheres trans praticam travestimisia para se validarem em detrimento de travestis. Não sei o quanto se beneficiam disso, mas isso é uma evidência de como a binaridade de gênero não contempla tanto travestis, mesmo que parte delas se posicione contra pessoas n-b.

Reunindo tudo que foi dito acima, como esses fenômenos não são efeitos da binaridade de gênero beneficiando esses grupos e instaurando novas relações de opressão entre es dissidentes? O que poderiam ser se não for isso? Se todo mundo que é trans não é binário, como exorsexismo se aplica para as vivências de pessoas trans binárias que sequer tomam para si as pautas e os signos da não-binaridade de gênero? Por fim, vocês acham mesmo que essas pessoas se importam se elas são “corpos fora do binário de sexo-gênero”, ou que vão negar que a transgeneridade delas sempre foi direcionada para os gêneros binários como ideais?

Muito se fala sobre cis questionarem sua cisgeneridade. E quando a binaridade reproduzida por parte da comunidade trans será devidamente questionada? Não acho que será com divagações sobre se é adequado chamar de binárias pessoas com peitos e pênis ou peito reto e vulva, já que esses corpos continuam podendo acessar partes das estruturas hegemônicas de gênero, e ainda podem fazer isso em detrimento de todos os corpos que não se encaixam no binário de gênero.

Existem outras nuances, sim, dentro e entre os grupos de bináries e não-bináries. Abordei de forma mais generalizada toda a discussão, pois ambos os grupos são muito diversos, há pessoas não-binárias que são homem e/ou mulher de alguma forma, e gêneros similares aos binários como travestis possuem questões próprias também. As dinâmicas de benefício e opressão contra dissidentes de gênero são complicadas e se mesclam muitas vezes, de modo que uma pessoa cis inconformista pode sofrer violência com motivações transmísicas, uma pessoa trans binária em transição pode ser alvo de uma ação exorsexista por causa de sua androginia, uma pessoa que se assumiu como não-cis depois de acessar um alto cargo numa empresa progressista pode ainda manter sua posição nela, uma pessoa n-b com uma aparência que a faz ser percebida como homem pode transitar na rua sem sofrer qualquer assédio. Meu ponto foi trazer o questionamento do questionamento do termo trans binárie e o que isso pode implicar.

De novo, se isso fosse um convite para questionar a binaridade de alguma forma, seria uma coisa. Se todas as pessoas trans binárias do mundo estivessem de acordo em adotar a não-binaridade para elas, isso seria muito bem-vindo. De fato, e acho interessante pontuar, há pessoas que se localizam na não-binaridade de gênero apenas por serem trans/não-cis, pois é o que faz sentido para elas, para a perspectiva pessoal delas. Se essas pessoas trans estivessem interessadas em se relocalizar fora da binaridade, poderiam começar com a própria autodeclaração. Isso está sendo proposto? Nessa discussão toda, não.

Se você for uma pessoa trans que até então se entende como de um gênero binário e/ou similar (como “travesti mulher”) e está questionando se o termo binárie faz sentido para ti, esse questionamento está vindo de um sentimento mais interno e que atravessa antes de tudo a identidade de gênero. Para isso, vale muito mais pesquisar sobre não-binaridade de gênero, e muitos conteúdos por aí disponíveis são compreensíveis e feitos para públicos diversos. E vale mais um lembrete amigável: você pode se descobrir não-binárie e ainda considerar relevante para si as pautas referentes a homens/mulheres e similares.

Enfim, até para trazer discussões sem tanto compromisso com a realidade precisamos ter responsabilidade e estratégia. E deixar nítido quais nuances estão sendo trazidas. Meu último recado, e podem interpretar como ácido: não quer ser chamade de binárie? Não seja binárie.

Publicado por Oltiel

Um pouco sobre mim: aporagênero (-/éli/e), polissexual, não-monogâmique, queer, militante LGBTQIAPN+, socialista, e mais umas coisinhas.

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